Nos debates sobre liberdade de expressão, é habitual mencionar-se um pensamento atribuído a Voltaire de que mesmo desaprovando uma opinião defenderia até à morte o direito a exprimi-la. A frase é realmente de uma sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall, mas a convicção faz jus ao autor de o “Tratado sobre a Tolerância”, grande arauto da liberdade de discurso e de credo.

É certo que relativizar a liberdade de expressão tem sido um caminho perigoso para a justificação do autoritarismo e do recuo de direitos civis. O ataque a estes tem passado sempre pelo ataque àquela.

Avaliar a liberdade de expressão num país é, aliás, um teste quase infalível para avaliar a sua fibra democrática. Veja-se a Hungria, a Rússia, a Turquia, ou a Índia e o Bangladesh, democracias que vão transitando para outra coisa a que, à falta de melhor, os cientistas políticos têm chamado “democraturas”, um híbrido com um balanço variável de elementos de democracia e de ditadura, mas em que se escorrega para a segunda. Na verdade, a democratura não é uma terceira opção de regime, mas apenas uma rampa deslizante que leva da democracia à ditadura.

Exemplo quase diametralmente oposto são os Estados Unidos. Em termos das expectativas do que seja uma democracia, tem marginado o abismo, contudo, um único pilar vai fazendo sobreviver a democracia americana – trata-se precisamente do conteúdo da 1ª emenda da Constituição, a liberdade de discurso e de imprensa.

Tudo isto levar-nos-ia a dizer que nunca é demais a defesa do direito à liberdade de expressão e a sublinhar que nele o que está em causa é o direito a dizer o que outros preferiam que ficasse calado. O que não se deixa calado poder melindrar, ferir susceptibilidades, escandalizar, até ofender, não deve, por si, inibir a liberdade de expressão. É precisamente quando a tensão do melindre acontece que há que a defender. Uma liberdade de expressão que fosse inócua não seria liberdade de expressão.

O direito à liberdade de expressão não é, contudo, ilimitado. Convive com outros direitos e garantias, em Portugal consagrados constitucionalmente, e que protegem os cidadãos. A liberdade de expressão não é compatível com o incitamento ao ódio e a difamação, que são crimes previstos no código penal português e que são agravados se acompanhados de publicidade.

Basta uma pesquisa pelo site do Ministério Público para encontrarmos termos precisos para limites: “A difamação de pessoa ou grupo de pessoas por causa da raça, cor, sexo, origem, ou religião, praticada em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social com intenção de incitar (ou de encorajar) à discriminação racial, constitui crime de discriminação racial.”

Juridicamente, os termos do debate são claros. A liberdade de expressão é um direito inquestionável como são inquestionáveis os seus limites. Naturalmente, na sua fronteira, há casos que carecem de interpretação e as interpretações podem ser controversas. É por isso que as leis não se aplicam automaticamente e há instâncias de recurso. E a isto não há muito a acrescentar.

Contudo, politicamente, nos tempos que correm, faz-se por parecer que a liberdade de expressão está em risco. E, na verdade, está em grande perigo, mas não tanto pelas razões por que se representa esse risco, cancelamentos e afins, mas por se exacerbar um maniqueísmo da liberdade da expressão de acordo com o qual ela estaria fatalmente comprometida se não for assumida irrestritamente.

Simplesmente, com este redesenho exacerbado do entendimento do que é a liberdade de expressão, assumida sem limites, na presunção falsa de que nenhuma palavra agride, violenta, discrimina, o que se promove é uma política de vulnerabilização de outros direitos e garantias fundamentais que até muito recentemente não eram postos em confronto com a liberdade de expressão.

Este redesenho leva à destruição do próprio direito à liberdade de expressão. Essa é a grande ameaça. Sem limites, tomada como liberdade de agredir, humilhar e intimidar, a liberdade de expressão torna-se, perversamente, um exercício de formas de calar o outro, os muitos outros que são visados pela “libertação” da intimidação verbal. Por definição, sem limites não há liberdade de expressão. Por isso, a defesa da liberdade de expressão entendida irrestritamente, como se pudesse existir sem limites, é um embuste político e que tem de ser combatido politicamente.

Mas erra-se quando se confina este debate exclusivamente à esfera da criminalidade, como por exemplo se posicionou José Pacheco Pereira aqui. Decerto, a injúria, a calúnia, a difamação, constituindo crimes tipificados na lei portuguesa, podem e devem ser levadas a tribunal. Mas, além disso, é preciso ver a mudança política em curso, para nela identificar, denunciar e criticar a tentativa de normalização de um entendimento da liberdade de expressão abusivamente intimidante e auto-contraditório.

Ouvirmos a segunda figura do protocolo de Estado autorizar politicamente que se afirme na Assembleia da República que uma etnia é burra, ou que um povo é preguiçoso, é estender ao mais alto nível este abuso sobre a liberdade de expressão que a instrumentaliza e vitima.

É claro que José Aguiar-Branco acredita que nem tudo pode ser dito, mas remetendo para os tribunais a verificação do abuso sobre a liberdade de expressão, deixa escancaradas as portas da democracia à liberdade de agredir, humilhar, intimidar.

Teria de ter dito muito mais, com palavras firmes, politizando em vez de se escusar com a remissão para os tribunais. Aliás, a pronta evocação do estatuto de imunidade parlamentar dos deputados só veio confirmar esta “libertação” do maniqueísmo sem restrições pretendido politicamente por alguns. É claro que irão a votos um dia, mas até lá muito se pode corroer os alicerces da democracia. E a judicialização da expressão política é só parte dessa corrosão.

É preciso perceber que a liberdade de expressão hoje corre sérios riscos, mas não apenas os que se ouvem no comentariado e órgãos políticos, aliás em grande medida também fruto da mesma deriva judicializante e litigante dos relacionamentos sociais.

Hoje, sucede à liberdade de expressão o que vem vitimando o valor da verdade. Uma espécie de “vale tudo”, que rejeita quaisquer limites, está para a liberdade de expressão como o “vale tudo” da pós-verdade, que rejeita qualquer compromisso com a verdade dos factos e a consistência dos argumentos. Nada disto, claro, é indiferente à debilitação de instâncias de validação como o trabalho do jornalismo ou da academia.

Esta ameaça devia chamar-se “pós-liberdade de expressão” e, em substância, o seu propósito é fazer desmoronar as condições de possibilidade da própria liberdade de expressão – a verdade e o pluralismo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.