As primeiras semanas da presidência de Trump demonstram que a sua agenda protecionista, nacionalista, anti-imigração e antidemocrática é para levar a sério. E, por isso, não deve haver condescendências sobre uma suposta normalização que aclamaria o ímpeto radical do novo Presidente. Pelo contrário, os primeiros decretos aprovados pela Casa Branca expressam uma resposta muito clara em relação às aspirações do eleitorado que elegeu Trump. Este sabe que para ter margem para governar e implementar a sua agenda terá de agarrar logo desde o início do mandato o núcleo fundamental dos seus votantes.

America First é um slogan fortíssimo e ameaçador da legitimidade de todos aqueles que ponham em causa as decisões do Presidente, como o juiz federal que anulou o veto à imigração e que logo foi acusado de ser um ‘pseudo-juiz’  e inimigo do senso comum que defende os interesses dos americanos. Assim, para além de significar um forte posicionamento face à comunidade internacional, implicando o bloqueio aos fluxos migratórios e a reconfiguração dos tratados comerciais, America first representa também a intensificação da polarização interna entre o povo americano e uma determinada elite da administração pública que, supostamente, não faz parte do povo.

Segundo esta conceção nem toda a elite que está fora do povo, os empresários, os patrões, os gestores também são povo. Ou seja, o povo está na iniciativa privada, nas empresas e nas respetivas comunidades locais. Em contrapartida, a administração pública, os tribunais e muitas instituições (com a exeção das forças armadas) são dominadas por uma elite que é contrária à vontade do povo e que vive à custa dos impostos pagos por quem verdadeiramente produz riqueza. Trata-se de uma de elite que se protege a si própria e utiliza as instituições públicas para preservar os seus interesses. Ou, dito de outra forma, no entender de Trump parte desta elite que integra o  Estado corporiza uma força de bloqueio ao interesse geral da nação. Uma força que utiliza a interpretação das leis para contrariar o senso comum que emana do verdadeiro povo… E o senso comum está acima da lei.

De entre as várias ameaças deste mandato presidencial que tendem a ser orientadas por práticas de cariz fascizante e pouco democráticas, a mais preocupante talvez seja esta ideia de que o povo está fora o Estado. O contra-ataque político em relação à crescente e saudável reação das instituições públicas face aos decretos presidenciais, tenderá assim a amplificar a confortação relativamente à elite de dentro do Estado e passará por vários tipos de agressão e de silenciamentos que, a prazo, poderão concretizar-se em saneamentos mais ou menos encapotados. O risco destas e de outras práticas não democráticas se incrustarem e tomarem conta das instituições públicas e do aparelho de Estado é muito sério.

Na verdade, é por esta via que o fascismo se vai naturalizando e fazendo parte da vida do dia a dia, como tão bem descreveu Sebastian Haffner no seu livro intitulado “História de um Alemão: Memórias 1914-1933”. O livro começa assim: “A história que aqui será contada tem por tema uma espécie de duelo. Trata-se de um duelo entre dois adversários muito desiguais: um Estado extremamente poderoso, forte e implacável, e um pequeno indivíduo, anónimo e desconhecido…”