” Vem por aqui ! “
Dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
Há, nos meus olhos, ironias e cansaços
Então cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
“Cântico Negro” – José Régio
(Regressada de férias, ainda embalada pelo sol, vejo os sinais da profunda crise que antecipo. Bem sei que é mais fácil obter likes e partilhas com imagens de cães e gatos, mas a vida vai para além de mensagens fofinhas e agradáveis. Quando a fome aperta, não há símbolos de coração que preencham a mesa e não bastam sorrisos para pagar as contas.)
A Senhora Adelina Soares, que não conheço, personifica uma das histórias mais marcantes dos trabalhadores que, quer por força dos efeitos da pandemia, quer neste caso concreto pelo seu aproveitamento para justificar o injustificável, se vêem a braços com a falta de pagamento dos seus salários.
A sua história, mulher de trabalho, com 60 anos, é fácil de contar mas dura de enfrentar. Pelo respectivo perfil, trabalha em limpezas no Norte, sendo que se deixou fotografar com um cartaz escrito pela própria. A respectiva empregadora, a empresa Ambiente e Jardim, Lda., investigada por suspeitas de corrupção e emissão de designadas facturas falsas, no montante total apurado até ao presente de 26 milhões de euros, terá sido objecto de um arresto, deixando sem pagamento 500 funcionários desde Maio de 2021. Não obstante, os trabalhadores desta empresa mantêm-se até hoje laborar, maxime em instituições públicas, sendo que, entre outras, a CP ainda não encontrou tempo para agir sobre esta situação.
O caso concreto desta senhora, que lançou um gritante apelo numa rede social, pedindo ajuda por se estar a acabar a comida, não se afastará do de outros, sejam desta empresa, seja de tantas outras[1]. Trata-se, portanto, de um povo que lava e limpa mas, depois do horário cumprido, se depara com o frigorífico vazio.
Alguns dos despedimentos colectivos que se anunciam, sempre precedidos de pungentes declarações dos respectivos representantes legais em vários órgãos de comunicação social, ocorrem em empresas que apresentam milhões de lucro. Outros, assentam em prejuízos directamente resultantes de erros de gestão em que os únicos responsabilizados são os que se encontram na base da cadeia hierárquica.
É verdade que podemos sempre virar a cara para o lado e fingir que não estamos a ver o que se passa, ainda no espírito da silly season que, neste país, tende a alargar-se ao ano todo.
É, aliás, tipicamente português a inconsequente revolta entre garfadas que se basta com um post mais irritado para ser esquecida no minuto seguinte. Talvez por isso a história se tenda a repetir, sendo que, por via de regra, cada um de nós apenas se preocupa quando um novo episódio ocorre no seu seio, altura em que a generalidade das pessoas percebe na pele que, se a impunidade é anunciada no campo penal, ela grassa é nas relações de trabalho.
Quando uns falam, sempre com propósitos eleitorais, em combate à corrupção, coloco os olhos nas suas reais vítimas e no que aqueles que nos fazem múltiplas promessas fizeram por elas. E, talvez por isso, tenha muita dificuldade em acreditar nos contos de fadas que nos apresentam aquando das eleições, uma vez que tendem a ter um final pouco feliz no dia imediatamente seguinte. Não, não vou ali. Prefiro a honradez dos que se confrontam com o vazio.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
[1] Para quem quiser ajudar esta senhora, o iban que a mesma anuncia como seu é o NIB 0033 0000 4561 5584 5270 5. É certo que será sempre um paliativo mas, pelo menos, no meio da desgraça, a Dona Adelina terá hipóteses de conseguir adiar a fome.