As relações humanas, seja entre indivíduos ou entre grupos, são inexoravelmente marcadas pelos fenómenos de preconceito e discriminação. Com este texto, pretendo clarificar o que são estes fenómenos, mas também em que magnitude existem na sociedade portuguesa. Posteriormente, enuncio alguns dos contributos que a Ciência tem avançado para a compreensão da origem destes fenómenos e potenciais soluções para os extinguir ou mitigar.
Preconceito e discriminação: o que são e como está Portugal a esse nível?
Tudo começa no preconceito. O preconceito é uma predisposição para avaliar de forma negativa um grupo como um todo ou um membro desse grupo.
Afirmar que não se gosta de negros é fazer uma afirmação preconceituosa. Existem exemplos infindáveis de diferentes tipos de preconceito, sendo que os mais fundamentais são os preconceitos baseados em grupos/pertenças que são, também, absolutamente fundamentais no nosso quotidiano e na nossa definição enquanto pessoas. Assim, podemos falar, por exemplo, de preconceito com base no sexo/género da pessoa, na idade, na “classe social”, e com base na “raça” ou “etnia”.
Estas atitudes preconceituosas podem tomar diferentes formas encerrando diferentes julgamentos. Nomeadamente, podemos julgar que as pessoas têm uma determinada característica apenas porque pertencem a um determinado grupo. Por exemplo, quando uma pessoa assume que outra pessoa é má condutora apenas porque esta é uma mulher.
Quando fazemos isto estamos a usar estereótipos. Os estereótipos são assim uma dimensão do preconceito e referem-se à atribuição automática de características a um indivíduo apenas porque o categorizamos como pertencente a um determinado grupo.
Por vezes, as pessoas preconceituosas tratam de forma diferenciada certas pessoas apenas porque estas pertencem a um determinado grupo. Esse tratamento diferenciado constitui a discriminação, a dimensão comportamental do preconceito. Estamos na presença de discriminação quando, por exemplo, um médico trata um paciente imigrante de forma mais negativa que um paciente português, ou quando crianças negras são impedidas de frequentar um espaço pelo simples facto de serem negras.
Estas instâncias de preconceito, estereótipos e discriminação ocorrem, fundamentalmente, em interações entre indivíduos, mas estas interações individuais vão deixando o seu lastro e acabam por criar ramificações sistémicas, institucionais e estruturais que são simultaneamente fruto de preconceito e facilitadoras da sua perpetuação.
É possível apresentar um “quadro” de Portugal ao nível destes fenómenos, com base em diversas fontes, desde investigação académica, passando pela evocação de episódios concretos, até dados oficiais ou recolhidos com amostras representativas da população portuguesa.
Uma análise detalhada destas fontes (cuja descrição não é o propósito aqui) revela que Portugal não beneficia de nenhuma excecionalidade e é marcado por imagens e dados díspares.
É um país que tem a maior percentagem de inquiridos que partilham de crenças racistas, mas é também o país da União Europeia onde ocorrem menos atos violentos por motivação racial. Um país onde há ainda desigualdades significativas ao nível do género (as mulheres continuam a auferir salários menores, com posições mais precárias, e investindo mais horas nas tarefas domésticas que os homens), mas onde as mulheres aumentaram significativamente a sua representatividade, sendo já a maioria em contextos importantes, como o ensino superior.
O mesmo país que é atualmente o terceiro melhor do mundo na integração de imigrantes, do ponto de vista legislativo, é também o país em que, há poucos anos, quase 60% dos inquiridos portugueses achava que o número de imigrantes devia diminuir, é o país que viu morrer um imigrante às mãos de agentes do SEF e que escraviza imigrantes para o trabalho na agricultura.
Um país que tem um primeiro-ministro não-branco e paridade em termos de ministros/ministras, e que ao mesmo tempo alberga no seu parlamento vários deputados de um partido cujo líder já mandou uma deputada negra “para a sua terra” em sessão plenária.
É ainda importante perceber que o preconceito, e principalmente a sua expressão, é um fenómeno mutável que é influenciado pelas normas sociais vigentes.
No passado, essas mudanças normativas levaram as pessoas, em parte, a repensar a validade dos seus pensamentos e ações, mas, por outro lado, levaram também a que as pessoas aprendessem a necessidade de esconder as suas verdadeiras posições sobre estes assuntos, por forma a escapar a sanções sociais.
A este nível, é ainda importante lembrar que alterações recentes nas normas sociais podem levar a uma maior expressão do preconceito na direção oposta, nomeadamente num quadro em que figuras relevantes da sociedade exibem afirmações e atos claramente preconceituosos e discriminatórios, alterando o quadro normativo de uma forma que poderá levar ao ressurgimento de um preconceito “às claras”.
Preconceito e discriminação: causas e soluções
Enquanto problema social, o preconceito é um fenómeno com causas e possíveis soluções. Debruço-me sucinta e essencialmente sobre os contributos que a Psicologia Social tem avançado a este nível.
Sendo um problema multifacetado, também várias e complexas são as suas causas. Estas vão desde fatores intra-individuais, como o estado de frustração ou o preconceito como resposta de pessoas que desenvolveram uma personalidade autoritária (devido a uma socialização rígida e injusta) e que respondem (em adultos) com negatividade face a grupos minoritários que contrariam as visões rígidas que estas pessoas partilham da sociedade.
Indo para lá do indivíduo, salientamos as relações de interdependência negativa, em que grupos têm interesses incompatíveis e desenvolvem sentimentos e perceções de ameaça, que depois sustentam atitudes negativas.
Mas um fator fulcral que merece especial menção é o processo de categorização, tão natural no ser humano, que nos põe a pensar num enquadramento nós vs. os outros, que nos leva a acentuar diferenças, a enviesamentos que favorecem o nosso próprio grupo (por motivos de uma procura de uma identidade social positiva) e que, em geral, são a base de muitas das atitudes negativas num contexto intergrupal.
Para lá de muitos outros fatores que mereceriam referência, vale a pena ainda referir que alguns fatores explicativos da origem estão, também, na base da perpetuação do preconceito, seja porque a natureza do preconceito e dos estereótipos contribui para a sua auto-perpetuação (i.e., mais facilmente encontramos o que esperamos encontrar), seja através de mecanismos de justificação a legitimação.
No campo das soluções, há duas fundamentais que merecem menção: o contacto entre grupos e as reconfigurações da categorização. A hipótese do contacto (introduzida por Gordon Allport nos anos 50), diz-nos que instâncias de contacto entre membros de grupos diferentes permite a desconfirmação de estereótipos, a empatização com a situação dos outros e uma redução generalizada da ansiedade intergrupal.
Quanto à categorização, se esta é uma causa tão fulcral de preconceito, então, naturalmente as soluções podem passar por reconfigurações desta, como, por exemplo, criar um contexto que lembra às pessoas que, a um nível mais elevado de abstração, pertencemos todos à mesma categoria, ao mesmo grupo (“Não somos só portugueses vs. franceses, somos todos Europeus!”).
Para lá dos contributos da Psicologia Social, vale a pena referir o impacto duradouro de experiências transformadoras, como quando nos colocamos no lugar das pessoas que são alvos habituais do preconceito e discriminação, e ainda o impacto da representatividade de grupos historicamente marginalizados, que pode levar à redução de preconceito por mais do que um caminho.
Rui Costa Lopes assina este texto na qualidade de autor do ensaio “Preconceito e Discriminação em Portugal”, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a FFMS.