No mundo ideal não haveria refugiados. Pelo menos não no sentido mais literal do termo que, infelizmente, tantas vezes temos utilizado nos últimos tempos. Não me refiro aos que se “refugiam” nas Maldivas para uns dias de sol e descanso. Tampouco falo dos que procuram um “refúgio” numa cabana no Nepal em busca da paz interior. Não contam aqui os que se “refugiam” na mesa mais discreta do restaurante para cozinhar negociatas ou os que procuram “refúgio” em nicknames ou pseudónimos para travar batalhas verbais.

Falo dos homens, mulheres e crianças que arriscam as vidas fugindo para o incerto, tentando escapar ao perigo que é certo. Os refugiados são pessoas que procuram escapar a perseguições ou conflitos armados. São homens a fugir de homens. São pessoas a tentar “penetrar” em áreas definidas por outras pessoas. Recordo o jogo do pátio da escola em que bastava dizer a palavra “stop” para criar uma bolha virtual à volta da qual não podia ser apanhada. Assim são as fronteiras. São “bolhas” artificialmente criadas pelo homem para dizer “stop” a outros homens no jogo dos adultos. Excecionando as divisões naturais, as fronteiras são convenções humanas traçadas por egos.

Os que hoje aclamamos como heróis do passado, traçaram com muito sangue as delimitações geométricas – às vezes – e arbitrárias – na maior parte dos casos. Para dentro desse risco desenhado a vermelho vivo ficam a autonomia e a soberania do país. Quando o “nosso” espaço começa a ficar muito perigoso e intolerável, seja por que razão for, a sobrevivência força-nos a ir procurar outro lugar. É aqui que começa a frustração. Vamos ter de pedir licença “ao outro”. E “o outro”, magnanimamente apoderando-se de algo que não era dele – o território e os seus recursos – tem a possibilidade de nos dizer que não. Di-lo com “tristeza” e “desalento” e, como gostava de poder ser útil e ajudar, vai doar dinheiro, vai envolver-se em causas, vai fazer manifestações solidárias em grandes avenidas de grandes capitais, vai empunhar cartazes e vai partilhar vídeos na internet. No final da cada uma dessas iniciativas vai ver a telenovela, vai jantar ao centro comercial, vai deitar o cartaz ao lixo e vai fechar o computador.

A marcha dos refugiados, contudo, não termina. Magoados, feridos, assustados, com fome e com sede, pensam “hoje nós, amanhã o outro”. No conforto do lar, depois de um banho e de uma refeição quentes, “os outros” olham para a televisão e comentam “se eles estivessem na nossa situação também nada fariam: é cada um por si”. Para que a consciência não fique tão pesada que os obrigue a pensar em soluções, vão aliviando a carga psicológica lamentando em conversas que penoso deve ser estar naquela situação. “Todos” se esquecem que não há “eles” e os “outros”. Olvidam que a regra é igual para todos, delimitada pela mesma condição: a humana.

A negação de asilo a estas pessoas que fogem de um espaço onde se desenvolvem ações que podem fazer perigar a sua vida, vai ter consequências devastadoras. Vai, quiçá, transformar em maus, homens bons. Estes indivíduos não vão voltar para o seu lugar de origem: a comunidade internacional assegura-lhes isso. Um dos princípios fundamentais estabelecidos no direito internacional é que os refugiados não devem ser expulsos ou devolvidos a situações em que a sua vida e liberdade estejam em perigo.  A solução vai ser “distribuí-los” por outros “espaços” sem escrutinar os seus ideais e as suas intenções – tal como não se faz com quem nasceu “dentro da linha”.

Não raras vezes, nessas comunidades os refugiados não se vão livrar desse rótulo e vão sentir-se para sempre diminuídos, e porventura até revoltados, pela condição de favor em que foram aceites. Noutros casos, podem nunca chegar a ser aceites e serem vítimas de insultos, ostracismo ou olhares de soslaio. O direito internacional define-os e protege-os no papel, mas nada pode fazer para os defender das emoções, sentimentos e atitudes humanas.

Curiosamente, os migrantes são muito melhor acolhidos pelas populações. Ao contrário dos refugiados que fogem da guerra ou perseguições, os migrantes escolhem deslocar-se para melhorar a sua vida em busca de novas oportunidades profissionais, académicas ou familiares. Não deixa de ser estranho que recebamos pior os que não têm escolha. Da mesma forma, acolhemos de forma mais genuína os desalojados por desastres naturais. Encaramos com pena as pessoas vítimas de tsunamis, terramotos, secas, furacões, cheias ou outras catástrofes ditadas pela natureza, mas olhamos mal para os refugiados mártires do ódio humano.

Numa quadra em que grande parte dos portugueses presta homenagem a uma família de refugiados que mudou o mundo e que é hoje simbolicamente alojada em tantos milhões de casas espalhadas pelo globo, não coloquemos barreiras aos presépios vivos dos tempos modernos. Pugnemos pelo fim das fronteiras físicas e psicológicas, deixemos cair as designações “nós e os outros” e não permitamos as réplicas das “Alepos deste mundo”.