O caso da proibição de entrada nos EUA de pessoas com origem em sete países de maioria muçulmana, que foi suspensa pela intervenção do poder judicial, não compara em gravidade e em consequências com o que ocorreu desde segunda-feira com a demissão do Conselheiro de Segurança Michael Flynn. A fragilidade da administração Trump agravou-se substancialmente. É impressionante ler a imprensa americana. Atuais e antigos chefes das secretas sabem muito do que se passou, os congressistas sabem, a imprensa esfola-se por saber mais e agora toda a gente começa a saber – bastante.

Sabe-se que Michael Flynn foi transformado em bode expiatório no caso das conversas com o embaixador russo, tidas durante o período de transição, ao aceitar assumir que teria mentido ao vice-presidente Pence sobre o teor das conversas. Ficou a saber-se que Flynn poderia ser alvo de chantagem por parte dos russos. Sabe-se que Reince Priebus, Republicano chief of staff de Trump e advogado especialista em litigância, questionou violentamente Flynn sobre as conversas e há quem diga que lhe arrancou a “confissão”. Apesar disso, Priebus é persona non grata do círculo próximo de Trump. Sabe-se que as conversas foram gravadas e que a Procuradora-Geral Sally Yates delas deu conhecimento à Casa Branca e aos líders do Congresso. Em vez de demitir Flynn, Trump demitiu Yates.

Sabe-se muito do que se passa nas conversas telefónicas do Presidente, a partir de pessoas que a elas assistem ou tomam conhecimento, e o que se passa em muitas reuniões em resultado dos permanentes leaks de funcionários atónitos e desorientados com o caos da administração Trump e prontos a “desabafar” com os jornalistas. Sabe-se de conversas telefónicas escutadas pelos diversos serviços de informação a partir de agentes dispostos a abrir a boca para os jornais ao abrigo de anonimato – dezenas de “gargantas fundas” – certamente em resultado dos ataques de Trump enquanto candidato àquelas organizações.

Sabe-se que essas organizações de intelligence estão elas próprias divididas quanto às investigações. Os democratas exigem saber do diretor do FBI porque é abriu um segundo inquérito ao caso dos emails de Hillary Clinton onze dias antes das eleições e não fez o mesmo relativamente ao hacking do Partido Democrata e ao email do diretor da campanha de Hillary Clinton. Sabe-se de transcrições de outras conversas a partir de antigos funcionários da administração Obama que ainda tiveram acesso a informação confidencial no período de transição, como ocorreu no caso de Flynn. Sabem-se coisas a partir do rodopio de pessoas nos corredores da Casa Branca, nas idas e vindas entre gabinetes, a partir dos jornalistas que têm acesso, que as interpelam e leem expressões faciais e interpretam tons de voz.

O jornal britânico The Guardian diz que se está perante um escândalo de proporções colossais. Começa a ser mais claro que o envolvimento do governo russo na eleição americana não se resumiu ao hacking do Partido Democrata. The New Yorker afirma que Putin está desgostoso com os homens de mão que colocou ao serviço de Trump, porque revelam falta de experiência governativa. A especulação sobre as motivações de Trump de aproximação à Rússia vai desde o estabelecimento de uma “parceria” contra a China à chantagem pessoal sobre Trump.

O jornal The American Interest descreve, a partir de dados públicos e de revelações antigas do Wikileaks, os negócios de décadas de Trump com os chamados oligarcas russos, que transferiram triliões de dólares da Rússia para o ocidente roubados a empresas de que se apoderaram ao preço da chuva no tempo de Boris Yeltsin – com o apoio e financiamento do FMI, Banco Mundial e de muitas outras instituições bancárias do ocidente, que acreditavam estar a ajudar a desenvolver o capitalismo na ex-União Soviética.

Um artigo no The Guardian chamava a atenção para o facto dos cidadãos americanos e britânicos não terem a noção de que as suas sociedades e governação são completamente transparentes para o mundo exterior. Eles não têm ideia do impacto diário daquilo que se passa nos seus países no resto do mundo. Essa ignorância será uma das razões porque britânicos e americanos foram tão ligeiros em votar Brexit e votar Trump. O conhecimento da língua inglesa é também um dos trunfos dos serviços de espionagem russos e chineses para desenvolver o hacking e a espionagem eletrónica nesses países.

Segundo a imprensa americana, o caso Flynn mal começou. Se se prova que Trump ordenou as conversas de Flynn, pode vir a ser invocada legislação que considera traição a discussão de assuntos de Negócios Estrangeiros com governos estrangeiros por pessoas que não são da administração, como era o caso de Trump e de Flynn durante o período de transição. Em dezembro, o congressista e antigo candidato republicano John McCain propôs a criação de comissão bipartidária para analisar a questão. Foi chumbada pelo líder parlamentar republicano. Agora, é provável que a tal comissão vá para a frente. Não sei se os portugueses têm noção de que a coisa é muito grave, com consequências geoestratégicas imensas.

Hoje, sabe-se muito sobre a personalidade de Trump, a sua maneira de atuar e, graças à ilegal indiscrição de um médico, até se conhece o nome de um medicamento que toma para manter a sua peculiar cabeleira e que poderá ter inúmeros efeitos secundários perversos, incluindo sexuais. Mas este mini resumo não ficaria completo sem uma referência à transformação de Trump em alvo de chacota permanente em todos os media, em particular na televisão. O programa “Saturday Night Live” tem uma rábula em que um grande personagem aterrador inspirado em Steve Bannon, o conselheiro para a estratégia, comanda um pequeno presidente Trump sentado numa minúscula secretária. Parece que esta rábula é o que mais enfurece o Presidente Trump.