Durante décadas, a eletricidade foi vista como um serviço invisível, estável e quase automático: bastava ligar um interruptor para a luz aparecer, sem grandes preocupações. Hoje, porém, o seu papel ganhou um novo peso económico e social, impulsionado pela crescente eletrificação e digitalização dos setores e pela integração de fontes renováveis como a solar e a eólica.

A infraestrutura base da rede elétrica mantém-se em grande parte a mesma, mas enfrenta agora desafios mais complexos: a maior frequência de eventos meteorológicos extremos testa a sua resiliência, enquanto os avanços na deteção e previsão desses eventos oferecem meios para antecipar falhas. O que parecia ficção científica — prever falhas na rede elétrica — é já uma realidade em Portugal.

Embora continue, à vista do consumidor, a parecer simples e automática, a rede elétrica nacional é um sistema altamente complexo. Eis alguns dados que ajudam a dar dimensão a essa complexidade:

  • Portugal tem mais de 85 000 km de linhas elétricas, abrangendo alta, média e baixa tensão.
  • A rede inclui cerca de 440 subestações, com mais de 700 transformadores de Alta em Média Tensão, e mais de 70 000 postos de transformação de Média em Baixa Tensão.
  • Estão em operação mais de 5,6 milhões de contadores inteligentes, com capacidade de telecontagem.
  • Todos os dias, cerca de 2 000 profissionais asseguram que a energia chega a 6,5 milhões de utilizadores, com um impressionante índice de disponibilidade de mais de 8 700 horas por ano – o que se traduz em apenas 62 minutos médios de interrupções anuais por utilizador.
  • Apesar da crescente integração de fontes renováveis e dos fenómenos meteorológicos extremos, o sistema tornou-se mais sustentável, mais resiliente e, com o apoio da tecnologia, mais inteligente.

Para reduzir a vulnerabilidade da rede, a Enlitia desenvolveu uma solução de inteligência artificial capaz de prever falhas na rede elétrica com vários dias de antecedência. O modelo combina dados meteorológicos, histórico de avarias, informações topográficas e dos ativos elétricos para gerar previsões precisas.

O projeto pioneiro cobre atualmente mais de 80.000 quilómetros de rede elétrica em Portugal continental, recorrendo a uma análise avançada que integra dados sobre a topologia e as características técnicas das linhas — incluindo o tipo de infraestrutura, a sua idade, extensão e fiabilidade histórica —, bem como informação geográfica detalhada, como a presença de vegetação, o relevo do terreno e a proximidade de zonas críticas.

Esta base de dados é enriquecida com o histórico de falhas registadas ao longo de mais de cinco anos de operação e com simulações meteorológicas de alta resolução, que incluem variáveis como velocidade e direção do vento, rajadas, precipitação, temperatura, pressão atmosférica e descargas atmosféricas. Cada uma das linhas elétricas é segmentada e analisada em segmentos de 100 metros, sendo calculado, para cada um deles, um índice de risco de falha com base na combinação destes fatores.

Os resultados são disponibilizados numa plataforma visual e operacional, permitindo aos técnicos antecipar zonas críticas antes de fenómenos meteorológicos adversos acontecerem, reforçar equipas de manutenção com antecedência, posicionar geradores móveis em pontos estratégicos e, posteriormente, avaliar o impacto real comparando-o com o risco previsto.

Mas será que os resultados mostram o real impacto da solução?

Os números falam por si:

  • Em 85% dos casos, as falhas ocorreram exatamente onde a previsão indicava maior risco.
  • Em 99% das falhas reais, os eventos aconteceram em áreas sinalizadas como críticas pelo sistema.

Esta capacidade de previsão mudou a forma como a rede é operada: deixou de ser apenas reativa para passar a ser proativa e baseada em dados.

Este projeto posiciona Portugal como caso de estudo sobre como aplicar inteligência artificial para antecipar riscos na rede elétrica, num contexto onde a transição energética exige respostas das novas tecnologias. A Enlitia prova que a inovação nacional pode responder a desafios complexos com soluções reais, aplicáveis e escaláveis. Numa altura em que os sistemas energéticos estão mais expostos a variações climáticas e pressões dos diversos stakeholders, antecipar é mais do que uma vantagem, é uma necessidade.

E a rede elétrica do futuro, ao que parece, já está a ser construída, com algoritmos, dados, mapas de risco… e uma boa dose de ambição.