Uma pessoa de família trabalhou no balcão de um banco em Xabregas, um local na freguesia do Beato, na supostamente cosmopolita Lisboa. Contou-me que todos os dias era preciso ajudar clientes do banco a digitar o código do cartão bancário nas máquinas Multibanco para levantarem dinheiro ou para escreverem o valor e o extenso de quantias nos cheques. Dez anos depois, idêntica inaptidão funcional persiste, revelando-se mesmo em coisas inventadas para facilitar a vida às pessoas.

Um amigo meu é médico no Hospital de Vila Franca de Xira, uma unidade de saúde que fica às portas da supostamente cosmopolita Lisboa, mas serve uma larga população rural e envelhecida. Ele disse-me chocado: “É difícil acreditar no que vejo todos os dias. As pessoas, em Lisboa, não sabem nada do que se passa aqui mesmo ao lado”. Segundo percebi, o registo para atendimento dos utentes é feito com a introdução do cartão de cidadão numa máquina que lê os dados residentes no chip. Não é preciso fazer mais nada. Mas esta simples operação revela-se complicada ou impossível para muitos daqueles utentes. Formam-se longas filas de pessoas atrapalhadas com a máquina, muitas delas apenas sexagenários. Era suposto a tecnologia digital facilitar a vida dos utentes, mas o resultado é o oposto.

Assim é ainda Portugal. Ora, aquelas pessoas padecem de iliteracia funcional e digital e uma parte significativa é analfabeta. Segundo o Censos, em 2011 Portugal tinha uma taxa de analfabetismo de 5,2%, igual a quase meio milhão de pessoas que não reconhecem letras, não sabem escrever ou ler. Esta taxa é superior à da China atualmente. Recorde-se que as línguas chinesas são substancialmente mais difíceis sob todos os aspetos que o português. Os países escandinavos eliminaram o analfabetismo em meados do século XIX graças, em boa parte, aos esforços da igreja protestante: era preciso saber ler a Bíblia. Cerca de cem anos depois, em 1950, Portugal tinha ainda 45% de analfabetos. Este injustificado e inadmissível atraso era, e é, uma vergonha e o principal obstáculo ao progresso. A falta de educação básica é a principal causa do atraso estrutural de Portugal. Podíamos ser, mas não somos, uma das nações mais ricas do mundo se tivéssemos levado a educação e o conhecimento a sério – desde sempre.

Há 20 anos, António Guterres tentou mobilizar o governo e o país para a educação. Foi a célebre “paixão” pela educação. Em março deste ano, Guterres reafirmou que Portugal só vencerá o “atraso estrutural” se der “prioridade absoluta” à educação, à ciência e à cultura. “Deve-se investir o mais que se puder no pré-escolar”, disse o antigo primeiro-ministro. Talvez agora, que é secretário-geral da ONU (um cargo importante no estrangeiro) a paspalhice nacional leve as suas palavras mais a sério.

Creio que “paixão” é uma péssima palavra para designar uma opção que nada tem de emocional. A opção pela educação e pelo conhecimento é absolutamente racional. De facto, a educação e o conhecimento são principalmente uma questão económica. Além disso, a experiência passada queimou a palavra, pelo que é melhor deixá-la para as coisas de coração. Todavia, num comício em Faro, referindo-se ao governo de Guterres, de que fez parte, o primeiro-ministro António Costa disse que é hora de o Governo voltar a dizer, como há 20 anos, que a educação tem que ser de novo uma paixão deste país e que é necessário investir na educação. Foi secundado pelo Presidente da República que relembrou a importância dada à educação no seu programa eleitoral.

Mais concretamente, o primeiro-ministro disse na mensagem de Natal que acredita “profundamente que o conhecimento é a chave para o nosso futuro” e que o Governo fixou “como objetivo fundamental generalizar o ensino pré-escolar a todas as crianças a partir dos três anos de idade e o programa Qualifica dirigido à educação e formação dos adultos”. Defendeu que é necessário enriquecer os currículos repondo o inglês e também o ensino artístico, “fundamental” para desenvolver a criatividade das crianças. O objetivo é cultural, político e económico. Costa disse que “é preciso investir na cultura e na ciência, na educação e na formação ao longo da vida para que Portugal tenha uma cidadania exigente e informada, melhores empregos, empresas mais produtivas e uma economia mais competitiva”.

O governo de Sócrates também declarou prioridade à educação, mas, tal como o governo de Cavaco Silva investiu no cinzento betão, aquele optou por escolas forradas a mármore, em vez de investir na qualificação da massa cinzenta. Esforço honesto, determinado e profícuo foi feito por Nuno Crato no governo Passos Coelho, como atestam os recentes resultados do estudo PISA, e que é lamentável não ter tido continuação. Talvez agora.

Politólogos há que encaram a opção de Costa pela educação e conhecimento com cinismo. Segundo politólogos ouvidos pelo jornal i, a educação é um tema “apetecível” para os partidos porque “toca em todas as pessoas”. É claro que não acreditam que seja para levar a sério e vaticinam um futuro idêntico à paixão de Guterres, ou seja, em 20 anos, míseros resultados. Têm razão para desconfiar. Os velhos aselhas que referi tinham apenas 20 anos a 25 de abril de 1974. São duas gerações perdidas.

Os resultados do investimento na educação e no conhecimento como “prioridade absoluta” apenas irão verificar-se dentro de uma geração, se a coisa for levada a sério. É por isso que políticos sem interesse noutro futuro que não seja o deles preferem dedicar-se a coisas mais imediatas. Acredito que António Costa é sincero, desde logo porque é pragmático, mas sobretudo porque creio que sabe que sem esse esforço estratégico de primeira ordem Portugal não vai a lado nenhum. Nem ele.