Depois de ler a crítica do Dr. Paulo Sande (PS) ao meu artigo no JE apercebi-me da sua dificuldade em interpretar o que escrevi. Fiquei na dúvida se essas dificuldades eram genuínas.

A “Intransigência cognitiva” que referi significa teimosia e não “intransigentes com défice cognitivo” como escreveu PS, num enviesamento interpretativo. A intransigência cognitiva por mim mencionada – uma metáfora não atingida – referia-se a três temas concretos (a adesão da Ucrânia à NATO, a recusa em negociar uma nova arquitetura de segurança europeia, e a presença de forças militares europeias na Ucrânia) e não ao que PS disse que eu tinha dito (“criticar sistematicamente os europeus, a NATO, e todos quantos condenam a invasão russa, de forma geral e genérica, chamando-os de ignorantes e intransigentes com défice cognitivo”).

Escrevi em várias ocasiões – e reitero – que a guerra travada na Ucrânia é ilegal. Mas PS veio insinuar que não é isso que eu penso (“e não me venha o Major-General dizer que não, porque eu também não lhe direi como planear uma batalha”). Estaremos, então, perante truques para ganhar audiência, ou antes dificuldades interpretativas?

Interrogo-me porque é que PS possuidor de acumulada experiência em assuntos europeus se autolimitou exibindo uma incomum superficialidade analítica. Por exemplo, recupera o Memorando de Budapeste (MB) como tábua de salvação para justificar o seu argumento. Tanto a Rússia como os EUA, de modo diferente, violaram o estabelecido no MB, embora não o admitam. A menos que PS considere lícito promover operações de mudança de regime (2004 e 2014) e depois dizer que isso não é uma violação do MB; assim, como o desvalorizam: não se trata de um tratado internacional, não cria direitos ou obrigações ao abrigo do direito internacional. Não impõe aos Estados signatários obrigações jurídicas adicionais além daquelas que já tinham no momento da sua assinatura. Os EUA negam que não tenham cumprido as suas obrigações argumentando não ser “O Memorando de Budapeste um acordo sobre garantias de segurança”.

A Ucrânia abandonou o armamento nuclear porque não tinha dinheiro para o manter (leia-se o que então disse o presidente ucraniano Leonid Kravchuk sobre o assunto) e porque não lhe era útil. As chaves encriptadas que permitiam a sua utilização estavam em Moscovo. Os EUA pressionaram o desarmamento nuclear ucraniano porque receavam que os ucranianos retirassem o plutónio das ogivas e o vendessem a atores pouco recomendáveis, como já aconteceu com parte do armamento fornecido agora pelo Ocidente. Para além de propaganda, o MB não serve para mais nada.

E, por falar da neutralidade ucraniana, quem primeiro a violou foi Kiev: (1) na sequência da revolução laranja, em 2004, ao identificar a adesão à NATO como o seu principal objetivo de política externa. Yanukovych, considerado pró-russo, reverteu essa política promovendo a chamada non block Policy, de neutralidade relativamente aos EUA, UE e Rússia. Exatamente por isso, os EUA promoveram o golpe de Maidan (2014); (2) ao que se junta o convite para a adesão da Ucrânia à NATO, na Cimeira de Bucareste (2008), promovido pela Administração George W. Bush (será que a intervenção russa na Geórgia teria a ver com isto?); (3) a alteração da Constituição ucraniana para incorporar essa adesão; (4) a parceria Ucrânia – EUA onde a entrada na NATO é definida como o principal objetivo de política externa a atingir. A menos que PS considere a entrada da Ucrânia na NATO um ato de neutralidade.

Talvez a análise de PS saísse mais enriquecida com a referência aos acordos de Belavezha (1991) em que a Ucrânia se comprometeu a respeitar os direitos e liberdades civis, políticas e sociais, económicas e culturais das minorias residentes no seu território (Art.º 2.º), tendo depois proíbido a língua russa e promulgado uma lei xenófoba “sobre os povos indígenas” onde são estabelecidos diferentes tipos de cidadãos.

Nesta senda muito haveria a dizer sobre a expansão da NATO. Para abreviar recomendo a PS uma obra de referência que certamente conhece Not One Inch: America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate (2021), de Mary Sarotte, onde a autora, uma académica americana especialista em História americana do pós-Guerra Fria, bem escalpeliza o tema. Uma irrepreensível compilação de documentos que é importante revisitar especialmente no atual contexto da guerra da Ucrânia.

Há duas ideias centrais sobre as quais convido PS a refletir: (1) ser o Direito Internacional uma ferramenta insuficiente para analisar/explicar a conflitualidade internacional. É cada vez mais importante o recurso a outras disciplinas, como, por exemplo, a Teoria das Relações Internacionais, a Geopolítica, ou os Estudos de Segurança, etc. O Direito internacional não só não explica, como o contributo para entender a conflitualidade entre grandes potências é muito limitado; (2) resistir à tentação de ver as Relações Internacionais como uma barricada só com dois lados. A realidade é mais complexa do que discutir os penalties assinalados ou por assinalar num jogo de futebol, que a acontecer deixa muito pouca margem para a imparcialidade.

PS vem dizer-nos que “obter garantias de segurança através de atos de agressão ilícitos, anexando territórios de Estados soberanos, é uma ideia própria de outros tempos que não devia ser propalada por um militar do Ocidente”. Estará PS no limiar da amnésia seletiva? Para não ir mais atrás na história, podemos começar pelas ações militares ilegais de algumas potências ocidentais no pós guerra-fria na Sérvia, Iraque, Líbia, etc., com o intuito de afirmar a tal Ordem Liberal Internacional que PS advoga. E, já agora, podemos acrescentar a presença ilegal dos EUA na Síria (que nunca o vi comentar), e a ação israelita na Palestina e no Líbano. Estará a amnésia seletiva a ser complementada por uma neutralidade elástica?

PS parece não reparar que não existe Ocidente, agora redenominado Ocidente alargado. Isso é uma construção da Diplomacia Pública. Existem os EUA e a Europa com interesses que coincidem algumas vezes, com rivalidades e competição geopolítica. Ao falar de Ocidente estão-se a meter no mesmo saco coisas distintas. Naturalmente que esta abordagem é conveniente para os EUA. Assim, o empregado de mesa até pensa ter o mesmo estatuto do dono do café.

Tenho o privilégio de trabalhar na área da resolução de conflitos há algumas décadas. Uma das questões básicas é perceber o problema dos litigantes. Para provocar aquilo que se designa por Transformação do Conflito é preciso que uns percebam o problema dos outros. Perceber – um exercício básico – não significa concordar. Significa, tão somente, recolher informação para ajudar as partes a resolverem os seus diferendos.

Sendo a amnésia seletiva ou não, é sempre bom lembrar que a paz se faz com o inimigo. As garantias de segurança “exigidas” pelos russos foram por eles associadas ao estabelecimento de uma nova Ordem Securitária na Europa. Excetuando o caso da implosão da URSS, não conheço ordens que não tenham resultado, de um ou de outro modo, da ação do uso da força. É uma constatação. Constatar factos, mesmo que desagradáveis, não significa tomar nenhum partido. Mas se o quadro analítico for o da discussão dos penalties num jogo de futebol, o incómodo está garantido à partida.

Fica a impressão de que PS não é nem ateu nem agnóstico no que respeita ao neoliberalismo intervencionista. Acredita (apesar da informação de natureza macroeconómica sobre a economia russa, disponibilizada pelo FMI e BM, que a colocam como a quarta economia mundial (PPP) à frente da Alemanha e do Japão) que a Rússia vai colapsar economicamente. “A crise é tal que os russos até já recorrem a trotinetes elétricas para atacar posições ucranianas”.

Boa-fé? Sério? Devolvo-lhe ambas as interrogações.

Será que PS alberga preconceitos intelectuais no seu pensamento que o impedem de ler o presente panorama estratégico que se vive na Europa? Será verdadeiramente incapaz de conceber a hipótese de que a tentativa de derrotar estrategicamente a Rússia falhou e que o resultado mais evidente é a debilidade da Europa, que aumenta a cada dia que passa. Uma Europa enfraquecida necessita de negociar com a Rússia rapidamente e fazer controlo de danos, antes que a situação piore ainda mais. Amanhã será tarde, caso contrário não tem iniciativa e ficará exclusivamente dependente daquilo que Trump acordar com Putin.

Os recentes desenvolvimentos políticos na Roménia, Hungria, Eslováquia, Áustria, Croácia, Alemanha, Reino Unido, Holanda e França onde a direita, talvez mais à direita do que a de PS, se aproxima do poder são motivos de grande preocupação. Isto só acontece porque as pessoas estão cansadas que lhes digam o que pensar, lhes restrinjam o acesso à informação, da substituição de um discurso de paz por um apelo diário incessante do ódio ao outro – nisto consiste o alimento básico na Europa.

Três notas finais: (1) Trump apenas veio acelerar a derrota ucraniana; (2) é aviltante apresentar a guerra na Ucrânia como uma guerra entre democracias e autocracias; (3) a sapiência de PS é estonteante – consegue equiparar uma guerra civil russa (Chechénia) com os acontecimentos na Ucrânia para explicar a agressividade de Putin. Nos territórios dos outros não há terrorismo, só combatentes da liberdade. Será que para PS, o massacre na escola de Beslan (2004, Ossétia do Norte) foi uma ação libertária? Voltando à minha interrogação sobre a amnésia seletiva, não compreendo como PS fala da intervenção militar da Rússia na Síria, desde 2015, sem mencionar os acontecimentos de 2011, à revelia do Conselho de Segurança. Será que consegue recordar-se do autor da frase “Chegámos, vimos, ele morreu”?

Não posso concluir sem uma última interrogação acerca da fiabilidade analítica de PS e da sua “capacidade para se adaptar” a novas situações. Não me esquecerei de o confrontar, na devida altura, com o que escreveu. Por agora, a sucessão de imprecisões, levam-me lamentavelmente a concluir que o título do artigo que escrevi lhe assenta que nem uma luva, embora não fosse essa a intenção.