Após as eleições legislativas em Portugal, foram feitas diversas reflexões sobre o surgimento de um novo paradigma na Assembleia da República.

Surgiram muitas comparações com os resultados de escrutínios passados, esquecendo, por vezes, de olhar para o próprio mapa demográfico que tem alterado, também, a relevância dos círculos eleitorais. O interior esvaziou-se de eleitores e eleitos, agora concentrados, sobretudo, nas zonas urbanas e litorais.

Também foram esquecidas as eleições dos anos 70 e 80 do século XX que, apesar de terem dois partidos que concentravam mais votos, apresentavam uma maior diversidade partidária no parlamento. Quer isto dizer que a fragmentação não é nova, mas apresenta caraterísticas diferenciadas e surge depois de décadas de bipolaridade governativa.

Na verdade, aquilo que foi a realidade dos últimos vinte anos, não se pode confundir com a realidade de cinquenta anos de democracia. O surgimento de dois grandes partidos que agregavam os votos em seu redor resulta de uma estabilização da própria democracia portuguesa e de uma tendência de concentração dos votos ao centro.

Na realidade, esta propensão seguiu também as tendências internacionais, essencialmente após a queda do bloco comunista. Portugal não é, nem nunca foi, imune aos contextos externos.

Em alguns momentos diferenciou-se nos ciclos políticos e na sua duração, por exemplo, quando a Revolução do 25 de Abril singra, na América Latina estamos no auge das ditaduras militares ou de inspiração militar, e Grécia Espanha e mantêm ainda os seus regimes autoritários.

A disrupção começa em Portugal, mas também é fruto da insustentabilidade da manutenção de uma guerra colonial inserida num contexto internacional hostil, tendente ao reconhecimento das expressões de autodeterminação dos territórios ainda colonizados. Em termos internacionais, o problema não era a ditadura em Portugal, mas a colonização em África e será esse contexto a corroer uma estabilidade autoritária de quase cinquenta anos.

Contudo, e em geral, está sempre numa posição periférica, em que as tendências têm impacto com algum atraso. Este hiato de tempo até daria espaço de manobra à sociedade para se preparar para essas ondas que chegam com a mudança dos ambientes internos e externos.

Nesse sentido, os resultados eleitorais não surpreendem e fazem parte de uma fragmentação interna e externa que corresponde ao desafio às hegemonias existentes. A estrutura do poder construída com base em sistemas de poder que deixaram de corresponder aos anseios de certas classes sociais, profissionais e, internacionalmente, de parte dos países, levam à sua contestação. Existe uma temporalidade para satisfazer as expectativas de acesso à distribuição de poder e riqueza. Ultrapassada essa temporalidade, e existindo capacidade de intervenção, o tabuleiro inverte-se e as forças de contestação ganham relevância.

50 anos depois, a democracia

Em Portugal, depois da Revolução de 1974, as expectativas foram enormes. Portugal cumprir-se-ia enquanto estado democrático, mas também mais igualitário, com o reforço dos serviços públicos, uma maior coesão territorial e uma melhor distribuição da riqueza traçariam o caminho para a prosperidade. A adesão à então Comunidade Económica Europeia era parte desse processo. Constituía a modernização do país e a afirmação dos valores democráticos.

O que aconteceu entretanto? A democracia parecia não ser garante imediato que tudo iria melhorar. Enormes dificuldades se levantaram nestes 50 anos de construção de um país que, em 1974, não tinha sistema nacional de saúde, a taxa de analfabetismo se cifrava nos 25,7% e as mulheres continuavam numa situação de subalternidade social inexplicável.

Este era o país que se teve de reconstruir em 50 anos. Umas vezes bem, outras mal, Portugal mudou radicalmente. Mas não o suficiente para que alguns dos seus concidadãos não deixassem de se sentir de fora dessas conquistas que a Revolução de Abril prometera.

Entretanto, o mundo também foi mudando. Crenças ideológicas abaladas com o fim do bloco soviético, uma globalização desafiante para uma economia estruturalmente dependente dos influxos de capital externo e o desgaste de um sistema internacional que apresentava os primeiros sinais de convulsão.

Campos férteis para o crescimento de extremismos, as sociedades europeias viram-se confrontadas com democracias que já não lhes conseguem garantir o crescimento permanente da economia, sendo permeáveis a mobilidades demográficas e a serviços públicos que garantiam o bem-estar desgastados.

Chegamos à segunda década do século XXI com margem para a afirmação dos partidos de direita populista e oportunista, que espreitam o momento para ganhar espaço. Para além dos espaços políticos nacionais conquistados, esses partidos preparam-se para a votação de junho, para eleger o Parlamento Europeu, que poderá mudar radicalmente a sua feição neste verão.

Desglobalizar sem perder a globalização

É evidente o cenário de fragmentação internacional. Novas geografias e potências emergentes pretendem participar nesse almejado mundo multilateral, mas também contribuir para moldá-lo.

Globalização e multilateralismo pareciam alinhados, num contexto de uma liderança inequívoca. Apesar dessa liderança se manter, surgem novos discursos e organizações multilaterais visando criar vozes alternativas às que habitualmente lideraram este processo. Apesar deste ambiente internacional, a globalização económica ainda não está fortemente comprometida, ao invés de uma tendência para desglobalizar o discurso político.

Contudo, o discurso das maiores potências, incluindo a União Europeia, baseia-se no equilíbrio entre manter os aspetos positivos da globalização (circulação de bens e serviços entre mercados de forma mais eficiente) e diminuir a dependência de outros mercados, sobretudo, no que respeita aos bens tecnológicos.

Significa que ainda não existe uma vontade política de multiplicar uma polarização extensível à economia, porquanto as perdas resultantes de uma maior instabilidade nos mercados prejudicariam os seus maiores intervenientes.

Entre esta turbulência e a emergência de novas potências regionais, e a reemergência da China como ator global, duas guerras têm marcado o quotidiano dos países europeus. A guerra na Ucrânia e a guerra em Gaza agitaram e precipitaram acontecimentos económicos, indo para além da confrontação militar ou do alinhamento político.

O cerco à Federação Russa após o início da guerra na Ucrânia, através de sanções económicas, acabou por produzir parcos efeitos na economia do país, que conseguiu manter o seu esforço de guerra e escoar a sua produção de hidrocarbonetos a preços de mercado interessantes.

Ao seu invés, a Europa foi sacudida pela ausência de fornecimentos de hidrocarbonetos russos, nomeadamente, provocando o aumento dos custos energéticos para a indústria.

Ainda sem um fim à vista para este conflito, eis que surge a guerra em Gaza, fruto do atentado terrorista do Hamas que teve como resposta uma ofensiva sem precedentes. O envolvimento de novos atores neste conflito, como os hutis e os seus ataques no Mar Vermelho, e a afirmação diplomática de algumas potências regionais, como o Catar, demonstram a internacionalização do conflito.

Novamente, os equilíbrios internacionais são abalados. As rotas comerciais sofrem revezes pela inoperacionalidade dos Canais do Suez e do Panamá, e eis que o tráfego ferroviário atravessando a Federação Russa é reabilitado como circuito de transporte de mercadorias.

A guerra acabou por fazer o que nem a pandemia tinha conseguido: reabilitar as rotas terrestres ferroviárias que cruzam a Rússia para prover fornecimentos entre a Ásia, sobretudo, a China e os mercados europeus.

A fragmentação internacional e estas conjunturas logísticas desafiam a resiliência europeia. Em simultâneo, agudizam o sentimento de insatisfação dos europeus que, nos seus países, deixam de ser capazes de manter o seu nível de bem-estar. Uma vez mais, emergem insatisfações que encontram na contestação a sua resposta. Esta é a receita explorada pela extrema-direita e que, por ora, não tem fim à vista.