A tentativa de contornar a lei do trabalho, recorrendo à imaginação, tem levado algumas grandes empresas a olharem para os processos disciplinares como a tábua de salvação para as suas insuficiências de gestão.

Uma determinada empresa do sector financeiro, no decurso do ano de 2018, numa prática reiterada mensalmente, instruía dois a três processos disciplinares com intenção de despedimento.

Quase todos estes processos tinham por base alegadas irregularidades praticadas pelos trabalhadores que, na verdade, nada tinham a ver com movimentações fiduciárias de contas ou valores, direitos ou garantias dos clientes. Alegadas irregularidades que não tinham, em todo o caso, qualquer relevância em termos de materialidade ou eventual dano. Tudo se resumia a alegadas inobservâncias de um qualquer artigo ou alínea de um regulamento interno. Importa frisar, já agora, que no seio das grandes empresas coexistem múltiplos regulamentos, normas, instruções internas, amiúde contendo dezenas de páginas. Acresce que raras são as empresas que explicitam o que mudou quando ocorrem alterações, que ministram treino e formação sobre os regulamentos, ou que dão destaque suficiente ao que se deve ou não deve fazer sobre as situações de trabalho do dia-a-dia e o seu enquadramento nos regulamentos internos.

Não deixa de ser curioso que nos filmes policiais oriundos de Hollywood, essa grande fábrica do imaginário popular, quando algum suspeito é detido pela polícia, a primeira coisa que lhe é dito são os seus direitos, emergentes da Quinta Emenda, mais conhecidos por Direitos de Miranda: o direito de não falar, algo que diga e assine pode ser usado contra si, o direito a ter um advogado, oficioso se necessário.

O leitor ignora, certamente, como em Portugal se faz tábua rasa deste direito de defesa elementar. Voltando à tal empresa, que serve de mote a este artigo, o expediente usado permitia despedir quase três dezenas de trabalhadores anualmente, sem direito a qualquer indemnização legal, a subsídio de desemprego e libertando a instituição de parte substancial dos custos associados à pensão de reforma.

Na prática, com esse expediente, a instituição gerava uma poupança superior a um milhão de euros por ano. Tudo isto, repito, sem que o trabalhador tivesse o direito de ser acompanhado por um advogado do seu sindicato, ou qualquer outro à sua escolha.

Ora, em 1966, o Supremo Tribunal dos EUA, no famoso caso Miranda vs. Estado do Arizona, considerou que o trabalhador tinha o direito de ficar calado e de ter patrocínio jurídico, invalidando assim qualquer confissão prévia sem a presença de um advogado.

Cinquenta e três anos depois, em Portugal, algumas grandes empresas continuam a praticar métodos de despedimento que envergonham qualquer sociedade democrática. Por isso, em sede de contratação colectiva, confrontados com estas práticas, alguns sindicatos têm insistido e feito finca-pé para que, em toda e qualquer situação prévia de natureza informal, ou durante a fase formal de processo disciplinar, seja o trabalhador sempre acompanhado de defesa jurídica.

Um princípio simples, elementar, praticado no mundo ocidental há 53 anos. Resistem por cá, ainda e sempre, algumas empresas e as suas associações empresariais. Elucidativo.