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Procuradora-Geral da República: E depois do adeus?

O processo de substituição de Joana Marques Vidal mostrou a força da procuradora-geral da República e a fraqueza do sistema político. Há avisos sérios e lições importantes a tirar do que se passou.
22 Setembro 2018, 15h00

António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, dois políticos com talento para estar de bem com Deus e com o Diabo, nomearam Lucília Gago, atual procuradora-geral adjunta, para o cargo de procuradora-geral da República (PGR). Na carta em que o primeiro-ministro propõe o nome e na nota em que o Presidente da República o aceita, ambos falam em continuar o bom trabalho de Joana Marques Vidal e afirmam o princípio democrático da limitação de mandatos. Como bons manobradores políticos, substituem a PGR tirando o fôlego às críticas por substituírem a PGR.

Nota prévia: são muito poucas as pessoas em Portugal com informação suficiente para ter uma opinião avalizada sobre Lucília Gago – e eu não sou uma delas. Isto é um pré-aviso ao leitor, para que tome com uma pitada de sal as muitas opiniões e análises que sobre a nova PGR hão de encher o comentariado imediato dos próximos dias. O que interessa discutir na nomeação é o processo e as lições que dele devemos tirar. O resto, sobre o acerto da escolha, só virá com a experiência.

A discussão sobre reconduzir ou substituir Joana Marques Vidal teve contornos inéditos na nossa democracia. E importa perceber porquê. Os preceitos legais e constitucionais aplicáveis são os mesmos de nomeações anteriores, não foi isso que mudou. Aliás, como ficou claro na discussão, nada há na Constituição ou na lei que impedisse um segundo mandato da atual PGR. Marcelo e Costa não quiseram mantê-la porque acham que um mandato único é uma proteção contra a “politização” do cargo. A teoria é que, se não tiver esperanças de ser reconduzido, o PGR, seja quem for, não terá a tentação de fazer favores ao poder político. 

O argumento é sensato e merece ser ponderado mas, tal como está, não passa de uma cortina de fumo. Por uma razão básica: esse “dissuasor da politização” só é eficaz se o tal mandato longo e único for expressamente ditado pela Constituição ou a lei. Porque se o Presidente da República e o primeiro-ministro mantêm o poder discricionário de se entenderem sobre quem quiserem – incluindo o poder de renomear o incumbente -, qualquer PGR pode alimentar a esperança de ser reconduzido e portanto querer agradar aos decisores para que lhe renovem o emprego. Dito de outra maneira, se o Presidente da República e o Governo estão tão convencidos da bondade do mandato não renovável, inscrevam-no na lei, em vez de o usarem como oca ferramenta tática.

O que há de interessante nesta utilização desengenhosa de um argumento sensato é a forma como revela que o Governo e o Presidente da República se sentiram, na verdade, pouco confortáveis com o poder discricionário que tiveram neste processo. Foi aliás também para gerir esse desconforto que a ministra da Justiça, sem que lei ou prática a obrigasse, fez questão de ouvir os partidos sobre a sucessão de Joana Marques Vidal. Isto podia ser uma boa notícia num país onde a cultura política é ditada por gente que gosta de exercer poderes discricionários. Significaria que Marcelo e Costa, em vez de serem os habituais ogres sedentos de poder, teriam um cultura mais aberta e participada no exercício dos seus cargos. Só que não foi bem isso.

A dura realidade (dura para o Governo, para os partidos, até para o Presidente da República) é que Joana Marques Vidal goza hoje de maior reconhecimento social do que qualquer político no ativo. E goza de um tipo de reconhecimento que hoje não encontramos nas instituições eleitas: não o que advém da pertença às cliques do poder ou às clientelas partidárias, ou aos círculos de corte da capital. A procuradora-geral da República goza do reconhecimento de um trabalho difícil feito com elevação, competência e eficácia. Dito de forma simples, o cidadão médio reconhece mais legitimidade democrática a Joana Marques Vidal do que a qualquer dos homens que decidiram a sua substituição. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa perceberam isto: tinham nas mãos a decisão sobre o futuro de alguém mais popular e com maior apoio social do que eles próprios.

É este o dado inédito na democracia portuguesa: num país onde os índices de confiança nas instituições e nos políticos têm vindo a cair a pique ao longo de anos, foi nesta procuradora-geral da República, e não em qualquer líder eleito, que os portugueses encontraram força, integridade e independência no exercício das funções. Foi nesta procuradora-geral da República que reconheceram a vontade de acabar com a cultura do silêncio e da mentira e a capacidade de colocar pelo menos um ator fundamental (o Ministério Público) de um pilar estrutural do Estado de Direito (a Justiça) a trabalhar eficazmente e com independência, fiel ao interesse público e a nenhum outro. 

Depois de anos de degradação lenta e continuada da qualidade da nossa democracia, foi Joana Marques Vidal quem começou, na parte que lhe cabe, alguma regeneração das instituições e devolveu aos cidadãos uma esperança ténue de que é possível reverter o declínio do Estado democrático. É isso que fica do mandato de Joana Marques Vidal, é esse superior serviço público que o país tem a agradecer-lhe, como magistrada e como cidadã, e é isso (a possível perda desse capital de confiança) que nos amedrontou no debate sobre a sua sucessão.

A própria Joana Marques Vidal havia assegurado que, mesmo que não continuasse, o caminho que começou não será revertido. Cabe-nos a todos garantir que assim seja. E isso passará por três coisas essenciais, que terão de ser feitas a várias velocidades.

A primeira é garantir condições de verdadeira independência e eficácia ao Ministério Público e às autoridades de investigação criminal. A começar por coisas simples mas inadiáveis como suprir a falta de meios da Polícia Judiciária, uma força insubstituível no combate ao crime violento e à corrupção que está hoje a funcionar com menos de metade dos inspetores criminais previstos no seu quadro de pessoal – isto para além das perícias informáticas e contabilísticas que são cruciais para a investigação de crimes económicos, ou para a necessidade de melhores sistemas de informação, ou para a simples renovação da frota automóvel e outras coisas básicas. Exige também romper com o modelo de “autonomia com trela” do Ministério Público, ao qual são dadas muitas garantias formais de independência mas que fica depois refém da gestão orçamental feita pelo poder político. Autonomia legal sem autonomia financeira é uma falsa autonomia, que convém a muitos mas não à integridade da Justiça nem ao interesse do país.

A segunda prioridade é reconhecer explicitamente o que Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa reconheceram implicitamente: o atual modelo de nomeação do PGR é mau. É discricionário, é opaco e facilmente permite – quando não incentiva – conluios e promiscuidades no processo decisório. Independentemente do mérito de Lucília Gago, um cargo vital como o de PGR não pode ser nomeado via comunicado de quatro parágrafos no site da Presidência da República. Ouvir os partidos é um bom começo, mas conversas à porta fechada são um pobre substituto para um processo aberto, com candidatos assumidos, audições públicas e amplo escrutínio parlamentar. Isto pode parecer impossível, sobretudo se implicar uma revisão constitucional. Mas não tem de implicar: o PGR ser nomeado pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, não impede que a Assembleia da República, da qual o Governo depende, tome a liderança do processo, fornecendo depois ao primeiro-ministro uma shortlist com a qual se entenderá com o Presidente da República. Não foi precisa uma revisão constitucional para os partidos serem ouvidos desta vez. É precisa apenas vontade política.

A terceira coisa a fazer, e a mais difícil de todas, é seguir o exemplo de Joana Marques Vidal. Este é um apelo não só à sua sucessora mas ao regime democrático e ao país. A regeneração do tecido social, a melhoria da qualidade da democracia, a restituição da dignidade que tantos cidadãos sentem perdida não pode assentar no heroísmo episódico de mártires republicanos – e até por isso será tanto melhor se continuarmos a ter um Ministério Público atuante sem a liderança da mulher que o pôs a atuar. Uma República é uma comunidade de leis e de valores, tanto quanto é uma comunidade de pessoas. Com o mesmo zelo e preocupação com que pediram a continuidade de Joana Marques Vidal, os cidadãos têm de exigir a continuidade do trabalho iniciado – e têm de exigir, inclusive com o seu voto, o mesmo espírito de missão, de entrega, de honestidade e serviço público a todos os órgãos de soberania, a todas as instituições de controlo, a todos os cargos eleitos, e à academia e às organizações da sociedade civil, para que todas as forças que o país reserva sejam postas ao seu serviço – na Justiça, na política, na defesa dos direitos sociais, no desenvolvimento económico.

O processo de nomeação de Lucília Gago é por natureza opaco e, por isso, talvez nunca venhamos a saber se esta foi a primeira escolha do Governo e do Presidente da República, ou se se viram forçados por pressão política e da opinião pública a apresentar um nome que pudessem anunciar como de continuidade. Certo é que mais vozes se fizeram ouvir neste processo do que em qualquer outro de nomeação de um procurador-geral da República. E uma democracia é feita disso: de muitas vozes.

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