Sempre me fascinou a imagem descrita por Umberto Eco de que a Europa é, antes de mais, um “laboratório de fragilidades interligadas”. A força vem da ligação. A fragilidade também. Quando uma estrutura depende da interdependência, basta mexer num ponto para fazer vibrar todo o edifício. Em 2025, há dois homens que perceberam essa arquitectura melhor do que muitos europeus. Putin e Trump não precisam de atacar a Europa diretamente. Basta-lhes tocar nos pontos certos da sua interdependência para a desestabilizar. E essa lucidez geopolítica é, talvez, a mais perigosa forma de inteligência estratégica da actualidade.

Há um momento em “Lawrence da Arábia” em que o protagonista risca na areia uma linha para separar dois exércitos. A câmara aproxima-se devagar e percebemos que não é apenas uma linha. É um acto político. Uma fronteira improvisada que, sem o saber, altera o destino de povos inteiros. A areia treme, o vento apaga, mas o gesto fica. Porque há riscos que não são desenhos. São intenções.

A Europa vive hoje nesse exacto instante cinematográfico. Não enfrenta um exército no deserto, mas dois líderes que, vindos de lados opostos do planeta, tentam traçar linhas invisíveis para partir o continente em peças. Vladimir Putin e Donald Trump não partilham cultura, ideologia ou rumo. Mas ambos sabem que, se a União Europeia (UE) deixar de ser um bloco, voltamos a viver num mapa riscável à mão. E quando um continente se torna riscado, torna-se vulnerável.

Desde 2007 que Putin deixou claro, sem poesia nem metáfora, que a expansão europeia era a principal ameaça aos interesses da Rússia. O discurso de Munique não foi um desabafo. Foi o anúncio de uma doutrina. Para Moscovo, a UE reúne todas as características que nenhuma potência autoritária deseja enfrentar. Um mercado interno gigantesco, um poder regulatório que define padrões globais, capacidade de sancionar com impacto real, fundos que financiam exércitos e assistência militar e um poder de compra energético que, durante décadas, limitou as ambições russas. A Rússia nunca conseguiu competir com este bloco. Mas sempre soube manipular cada país isoladamente.

O objectivo de Putin é simples e antigo: regressar à lógica imperial das negociações bilaterais. Uma Europa unida fixa regras. Uma Europa fragmentada cria oportunidades. Moscovo sempre foi mais forte quando tratou de um país de cada vez, quando dividiu alianças, quando explorou fragilidades internas. É por isso que, ao longo de mais de quinze anos, a Rússia construiu a mais sofisticada máquina de guerra híbrida do século. Desinformação digital maciça, ataques cibernéticos a parlamentos, financiamento clandestino de partidos radicais anti-UE, manipulação eleitoral, instrumentalização energética, infiltração religiosa e cultural. Cada engrenagem desta máquina funciona para o mesmo fim: enfraquecer a União Europeia até ela deixar de conseguir actuar como actor político coerente.

O mais desconfortável e inesperado é que, do outro lado do Atlântico, Donald Trump persegue o mesmo resultado final, embora por razões totalmente diferentes. Desde 2016 que Trump diz em voz alta aquilo que muitos presidentes americanos apenas pensavam em privado. As alianças multilaterais são, na sua visão, um prejuízo líquido para os Estados Unidos. Os blocos regionais complicam transacções. As estruturas supranacionais atrapalham o negócio. Trump não acredita em arquitectura internacional. Acredita em tabelas de preços.

Nessa lógica, a União Europeia é um problema. Porque não é facilmente pressionável. Porque impõe regras. Porque negoceia como bloco. Porque desafia a supremacia regulatória americana. Trump prefere falar com França sem a Alemanha, com Itália sem Bruxelas, com a Polónia sem tratados. Um país isolado é negociável. Um bloco unido não é. A lista de evidências é extensa. Chamou a UE de inimiga em 2018, impôs tarifas punitivas ao aço e ao alumínio, tentou romper o eixo França-Alemanha, boicotou reuniões com o Conselho Europeu, pressionou capitais europeias para acordos bilaterais ilegais e permitiu que o seu próprio embaixador admitisse, preto no branco, que Trump queria destruir a UE para negociar país a país.

Trump vê o mundo como uma feira de transacções. Blocos fortes atrapalham. Estados isolados simplificam. A Europa, para ele, deve ser um mercado dependente de Washington, dividido e economicamente permeável.

E é aqui que nasce a convergência mais perigosa do nosso tempo. Putin mina a Europa por baixo. Redes sociais, espionagem, trolls digitais, propaganda, influenciadores extremistas, operações culturais. Trump mina a Europa por cima. Tarifas, chantagem, deslegitimação pública, humilhação diplomática, corrosão da NATO.

Um penetra. O outro pressiona. Um desagrega. O outro dissolve. Um quer uma Europa vulnerável. O outro quer uma Europa dominável. Não há ideologia comum. Há geometria estratégica. Quando uma Europa se parte, ambos ganham.

A guerra na Ucrânia provou esta dinâmica de forma brutal. Para Putin, foi a oportunidade de testar até onde podia esticar o continente sem encontrar resistência proporcional. Para Trump, foi o catalisador perfeito para retirar os EUA da liderança da defesa europeia, obrigando os europeus a pagar o custo da sua própria segurança e libertando Washington para uma política externa menos comprometida. A Europa, perdida entre hesitações e dependências, tornou-se simultaneamente palco e vítima.

O que está agora em causa já não é apenas a sobrevivência da Ucrânia. É a sobrevivência da ideia europeia. Porque se a Europa ceder diante desta convergência, perde a capacidade de se proteger, de se afirmar e de se governar. Torna-se um continente administrado por outros. Um mosaico de capitais negociáveis, pressionáveis e vulneráveis. Uma promoção geopolítica que já conhecemos demasiado bem na história.

A UE não pode voltar a ser um conjunto de linhas riscadas na areia, prontas a ser apagadas por quem passa. Para sobreviver, precisa de recuperar a noção de que o seu maior valor sempre foi a união. A capacidade de falar a uma só voz num mundo que está a gritar. A força que vem não do tamanho de cada país, mas do peso combinado de todos.

Putin sabe isto. Trump sabe isto. A Europa tem de voltar a sabê-lo. Porque há fronteiras que só desaparecem quando deixamos de acreditar nelas. E há projectos que só colapsam quando os seus membros se esquecem de que foram construídos para resistir a mãos que gostam demasiado de riscar mapas.