No próximo domingo passam quarenta e sete anos desde que um golpe de estado, no mesmo dia transformado em revolta militar, decidiu que era tempo de derrubar o Estado Novo. Um regime que, ao arrepio da História, teimava em manter de pé a última parcela do Império Euromundista.
Quase meio século passado, já é possível questionar se valeu a pena e recordar Fernando Pessoa no que à resposta diz respeito. Sim, valeu a pena, mesmo quando a alma, ao contrário da ambição pessoal, foi pequena. Demasiado e ofensivamente pequena.
A forma atabalhoada como foi encerrado o ciclo colonial, os conflitos sociais decorrentes daquilo que se dizia ser uma Reforma Agrária e que, em múltiplos casos, mais pareceu uma «reforma agarra» que retirou as terras a rendeiros e pequenos agricultores e as ocupações selvagens de empresas que laboravam num bom ambiente relacional representam, inegavelmente, um passivo. Assim como a ação terrorista das FP-25 que quiseram impor à lei da bomba a sua ideia de país.
Porém, o acertar dos ponteiros com o relógio da História, o direito à liberdade, o fim da censura ou exame prévio, o regresso ao multipartidarismo e a integração europeia, mais a mais complementada pela reunião lusófona, constituem um ativo incomensuravelmente superior.
Por isso, não aceito a posição dos saudosos da época em que a propaganda do Estado Novo fez de cada português, mesmo de quem não tinham casa própria, o dono de uma parcela do império. Da mesma forma não comungo da ideia de quem coloca o enfoque no elevado número de detentores de cargos que, desde o 25 de Abril, se viram a braços com a justiça. A Operação Marquês e a detenção da Presidente de uma Câmara Municipal como os maus exemplos mais recentes. Uma lista que é bem provável que venha a crescer desde que os serviços de informação e o Ministério Público se revelem competentes na vigilância que lhes está oficialmente cometida.
Depois de muitos semestres a lecionar a cadeira – hoje com a designação de unidade curricular – de História das Ideias e Teorias Políticas, sei que Santo Agostinho tinha uma visão pessimista da natureza humana. Dizia que somos dominados por três tendências muito negativas e que nos levam a pecar porque são apetites insaciáveis, sendo que duas dessas inclinações residem no apetite pelos bens materiais ou cupidez e na paixão pelo poder. Uma generalização porventura excessiva, mas que ajuda a explicar que haja quem continue a mercadejar os cargos políticos que lhe foram confiados e a aceitar vantagem indevida dos mesmos.
Talvez convenha recordar que os abusos do Poder estão longe – bem pelo contrário – de acontecer apenas em democracia. Sucedem, de forma sistemática, nos regimes ditatoriais de esquerda e de direita. Só que são silenciados e não ocupam espaço nos meios de comunicação social. A censura dispõe de um lápis azul constantemente afiado e o regime é detentor de cárceres sempre com disponibilidade para novos inquilinos.
Cumprir Abril não pode ser apenas um slogan. Tem obrigatoriamente de passar pela prática democrática quotidiana num Estado de Direito. Num Portugal onde os julgamentos não podem ser feitos na rua, mas onde quem sucumbe às mencionadas tendências sabe que prestará contas.
O caminho faz-se caminhando. Os olhos no futuro, mas com a memória sempre presente. Para que haja Abril. Apesar de pecados individuais ou grupais. Portugal merece!