Como alguém que se identifica plenamente com o espetro político da esquerda e tem desenvolvido atividade política, há mais de uma década, firmemente ancorada nesse espetro, tenho sido regularmente perseguida por uma narrativa que ganhou força, especialmente desde os anos da presidência Trump, de que a esquerda progressista perdeu o rumo ao centrar-se demasiado nas questões identitárias.
Ouço regularmente esses comentários, muitas vezes sob a forma de acusações, como se a esquerda em que me insiro tivesse falhado em confrontar a grande luta dos nossos tempos, a luta de classes.
Na verdade, os trabalhadores não têm vindo a ser sujeitos a menos opressão do que no séc. XIX ou XX. Pelo contrário, vivemos tempos em que assistimos a uma rápida erosão de muitos direitos sociais e laborais conquistados, em que o ultra-capitalismo conseguiu criar estratégias insidiosas para nos convencer de que aquilo que é, na verdade, precariedade, é algo positivo. Mas, entretanto, veio uma pandemia que quebrou essas noções e mostrou os pés de barro em que está assente grande parte do mercado laboral. E foi a esquerda que continuou a expor e a criticar essas fragilidades.
A mesma esquerda que se insurgiu perante os comentários homofóbicos de um professor de uma universidade pública, que foi esta semana suspenso devido ao seu discurso de ódio nas redes sociais. Não faltou logo uma horda de comentadores a reclamar sobre o sacrossanto direito à opinião, esquecendo-se, convenientemente, de que há limites à liberdade de expressão, especialmente quando se assume em pleno um discurso de ódio contra uma determinada comunidade, neste caso a LGBTQI+.
Estas denúncias têm ocupado o espaço mediático com regularidade. Esta semana foi o professor da Universidade de Aveiro, mas o racismo, a homofobia, a xenofobia, são recorrentes em muitos setores da sociedade e as pessoas visadas simplesmente já não aceitam o ódio de que são alvo.
No entanto, continua a predominar uma visão muito conservadora, de que estes assuntos descaracterizam a “verdadeira” política, e não passam de mera distração da única coisa que realmente importa: a ditadura da economia. Temos uma parte da sociedade conservadora desconfiada de tudo o que é ambientalismo, luta contra o racismo, igualdade de género, política para migrantes e refugiados. E essa desconfiança estende-se a muitos opinion makers, políticos ou jornalistas, que teimam nesta visão polarizada de que a luta de classes e a luta contra o racismo, o machismo e todas as outras formas de opressão são incompatíveis.
Elas não só não se excluem, como se intersecionam. Daí que o termo intersecionalidade venha a ganhar força (precisamente entre essa esquerda “identitária”) não como forma de dizer que uma luta é mais dominante e legítima do que a outra, mas que todas elas se cruzam ao mesmo nível, representando verdadeiramente os interesses de toda a sociedade. Se não soubermos explicar isto de uma forma convincente, aí sim, a esquerda estará a falhar no seu trabalho.
À medida que o panorama político português vai sendo continuamente alterado com a retórica agressiva de neoconservadores e populistas, é preciso saber infletir narrativas contraproducentes e deixar claro que a valorização de todas as identidades – e a classe é uma identidade como qualquer uma das outras – é o caminho para a sociedade do futuro.