Pode parecer estranho em 2025 perguntarmos por uma nova ordem mundial e recuarmos ao final da Segunda Guerra Mundial, há 80 anos. Mas, em boa medida, o que vivemos hoje é uma tentativa de sobrevivência dessa ordem mundial, a forçar a sua incrustação no real, apesar do mundo já ser definitivamente outro.

A conferência de Ialta, em fevereiro de 1945, com Estaline, Franklin Roosevelt e Winston Churchill, seguida pela conferência de Potsdam, em agosto, perto de Berlim, a Alemanha já vencida, e nas vésperas do horror das bombas atómicas que levariam à rendição incondicional do Japão, lançaram as bases de uma ordem internacional que estabelecia, por um lado, uma ideia de governo razoável do mundo, a criação da ONU, mas, por outro, estabelecia uma divisão entre Ocidente e Leste, dois blocos de poder desenhando-se e que manteria uma Guerra Fria até à queda do muro de Berlim, a unificação da Alemanha, o fim da União Soviética (URSS), a independência das antigas repúblicas soviéticas.

Só que essa ordem mundial persistiria, porque o outro lado da contenda na Guerra Fria não desarmou. Apesar do Bloco de Leste, o Pacto de Varsóvia, a própria União Soviética e os princípios marxistas-leninistas que o regiam terem caído, do outro lado permaneceram não apenas uma economia capitalista, aliás tão vitoriosa que se achava na posição de proclamar o fim da história, o pensamento único, o consenso definitivo, mas também, e contraditoriamente, os seus instrumentos de poder – muito especialmente a NATO. Bem ensina a dialéctica hegeliana do senhor e do escravo que um só de define pelo outro, nenhum desaparecendo senão desaparecer o outro.

É também aqui o caso, a não desmobilização do Bloco Ocidental nutriu a sobrevivência do outro pólo, que se foi reconfigurando na figura de Vladimir Putin. Portanto, a ordem internacional do pós-Segunda Guerra não terminou, nem em 1989, com a queda do muro de Berlim, nem em 1991, com o fim da antiga URSS. Pelo contrário prosseguiu, pelo menos numa das linhas por que se tece a história. Não é apenas um vestígio anacrónico que sobrevive.

Donald Trump é, aliás, um claro defensor da sobrevivência dessa ordem antiga que fazia dos EUA o país mais importante do mundo. Se recusa a multilateralidade e impõe o argumento da força é para manter a posição de poder que, de facto, era a dos EUA na ordem internacional anterior e em que a Europa obedece à sua vontade, subalterna. A mensagem vergonhosamente bajuladora que o Secretário-Geral da NATO, o holandês Mark Rutte, endereçou a Trump faz símbolo ridículo da ausência de vontade própria e protagonismo soberano da Europa. Só Espanha, sob ameaças de retaliação, se atreve a enfrentar os ditames de Trump, o mesmo que já ameaçou a integridade territorial da Dinamarca, um país europeu membro da NATO. Aliás, como sucedeu ao Canadá, outro país membro da NATO.

Fazer a América Grande outra vez, fazer o mundo a preto e branco outra vez, não disfarça uma ambição restauracionista, em que o que se restaura é a ordem do pós-guerra, fazendo-a sobreviver custe o que custar. Percebe-se, assim, porque Trump ainda chegou a ter simpatia por Putin, que naturalmente defende, do outro lado da barricada, o meu ponto de vista geoestratégico.

Esta sobrevivência da ordem do pós-guerra (e do que nela se guarda da ordem colonial) não se faz sem uma tremenda torção sobre o que era um seu pressuposto basilar – a congruência entre ordem internacional e direito internacional, ou ainda, entre a face “de facto” e a face “de jure” daquela ordem, para isso, valendo de forma decisiva a mediação da ONU e das suas instâncias. Este pressuposto, que já vinha sendo desrespeitado desde a viragem do milénio, é hoje abertamente desprezado, até à contradição flagrante e extrema, a que assistimos impotentes, da acção de Benjamin Netanyahu – que devendo ser considerado um pária da ordem internacional, responsável por uma genocídio, é, ao mesmo tempo, o paladino da preservação de uma certa ordem internacional.

O descolamento da ordem internacional de um fundamento no direito internacional, restaura a imagem de que a relação entre países é a do estado de natureza hobbesiano – iminente estado de guerra de todos contra todos, uns lobos dos outros, receosos da morte violenta e inesperada – em detrimento da construção de uma paz dos povos à maneira de Immanuel Kant. E é congruente com a pressão, até sobre os textos constitucionais, no sentido de trocar valores fundamentais por narrativas fundacionais.

Ou seja: subalternizando os capítulos sobre direitos e garantias fundamentais, em linha com uma doutrina de direitos humanos (como a que se plasma na Carta da ONU dos Direitos Humanos), a enfatuamentos identitários, a sacralizações da história, escolhendo a afirmação da incomensurabilidade em detrimento do reconhecimento do comum. Desta maneira, substituindo fundamentos por fundações, legitima-se a libertação incontida da violência para garantir a sobrevivência de uma ordem de facto que já não é a do nosso tempo.

Mas voltando à pergunta inicial sobre que nova ordem mundial estamos a viver, o que está, então, a mudar de forma que possamos dizer ser irreconhecível por essa ordem que nos chega de há 80 anos e que a faz agarrar-se a tudo o que pode, com violência, arriscando a guerra mundial, contemporizando com um genocídio, escândalo inapagável e obsceno de uma geração? Apontam-se três grandes razões, que não pretendem ser exclusivas:

1/ O centro demográfico do mundo já não está na Europa, ou no Ocidente no seu conjunto, não está no G7, sequer no conjunto mais amplo dos países ditos “desenvolvidos” que compõem a OCDE. A Índia sozinha tem mais população que os 38 membros da OCDE juntos. E, contudo, o seu PIB corresponde a uns 4% do PIB mundial, ao passo que o da OCDE corresponde a quase 2/3 do PIB mundial nominal. Mas esta vantagem tremenda, historicamente perpetuada por séculos, está a desgastar-se. O centro geopolítico do mundo, obviamente situado ainda em Washington, dista muitos milhares de quilómetros de Xangai, onde tenderá a fixar-se o novo centro económico do mundo. E Dhaka, capital do Bangladesh, é uma excelente cidade candidata a centro demográfico do mundo. O “Ocidente” tem ainda o poder, mas não tem nem a demografia nem a economia. A prazo, esse poder terá as suas bases abaladas a não ser que o que resta seja empregue para deter as tendências indicadas. É precisamente isso que vemos acontecer de uma forma cada vez mais perigosa, com um risco de guerra, mesmo mundial.

2/ O mundo é um globo de relações cada vez mais pequeno, as fronteiras naturais, montanhas e rios a dividir territórios e a fazer paisagem, têm cada vez menos relevância, substituídas pela violência dos muros, cercas, campos e mares de morte, a tentar manter um planeta com distâncias inalcançáveis para os desprivilegiados. Não fora a violência, e deveríamos reconhecer que manter estas fronteiras é contrariar a história de forma tão flagrante como esperar que possamos voltar a um tempo sem tecnologia. Aliás, a tecnologia digital é um ingrediente desta evidência. A digitalização das interacções no mundo contemporâneo não conhece fronteiras. Numa época em que não há um só espaço, estas fronteiras que matam tantos é um anacronismo que só a violência faz sobreviver. Até culturalmente, com tendências hegemónicas, mas também apesar delas, o mundo está cada vez mais ligado, conhece-se melhor. Estas razões fazem com que num mundo global sejamos cada vez menos estrangeiros uns para os outros.

3/ Finalmente, como nunca no passado, percebemos um planeta pequeno, com recursos finitos, o que se faz num lado afectando o outro, alterações climáticas, aquecimento global, perda de biodiversidade. Sobretudo a acção do Norte global, com a sua imensa pegada ecológica, tem responsabilidade sobre a subida do nível das águas dos oceanos, a desertificação, os ciclones anormalmente intensos, fenómenos que atingem as populações mais vulneráveis, ignorando fronteiras como os bandos de aves migratórias que nos sobrevoam. Hoje, parte significativa dos fluxos migratórios têm muito que ver com estas causas, de que aqueles que se barricam, havendo um pouco de decência, não se podem desresponsabilizar.

É este o mundo que faz o fundo contra o qual a velha ordem internacional pós-guerra e com os restos coloniais quer preservar-se, com violência, preterindo a procura do fundamento razoável em favor do exacerbamento de narrativas fundacionais, desligando, auto-segregando-se e segregando, em vez de procurar o comum.

É indispensável associar a este desforço um conjunto de condições relativas à maneira como nos relacionamos com a própria ideia de sentido. É o caso do relativismo, que prescinde de se validar diante dos outros mediante razões, na assunção da relatividade das razões de todas as partes.

O relativismo não é perspectivismo, humildade epistemológica, nem respeitador de outro que ignora. É só a outra face do dogmatismo, talvez numa versão um pouco menos ingénua. E, na sua aversão à ideia de uma verdade que exceda o seu ponto de vista, a sua compreensão, não poderia ter outra consequência senão a pós-verdade, tornada irrelevante a diferença entre verdade e falsidade, tomada qualquer pretensão de um discurso verdadeiro (não verdade “para mim”, “para ti”, “para eles”) um abuso de poder.

Acresce uma última condição, talvez, de todas, a mais grave e a menos apercebida. Vivemos tempos de literalização do sentido. O fundamentalismo que literalizou os textos religiosos não tem nada de medieval, mas sim de moderno. Acontece com outros textos, com a maneira como lidamos com a linguagem, cada vez menos tolerantes a sentidos que se guardem na sombra de usos passados, de uma história vivida de conotações, ou saiam dos limites estabelecidos pela figuração e a metáfora. A literalização retira-nos o suplemento simbólico, a espessura de sentido além da superfície do real.

Para a indústria dos media cada vez importa menos um tema, um assunto, a interpretação que nos capturaria o espírito, com maior ou menor paixão. O que importa são os estímulos que as neurociências dizem activar algum processo nos nossos cérebros.

A literalização materializa-se com o espírito a não ter vida além da do cérebro, a conotação a não ter mais espaço de irradiação além dos limites da denotação, o contingente a ser domesticado pelo necessário, os acontecimentos a serem substituídos pelo ambiente virtual, quase equivalente a reduzirmo-nos a ratos em ambiente de laboratório, a liberdade do risco do encontro a ser substituída pela segurança da ordem fechada, e assim vermos extinguir-se paulatinamente o começar, essa capacidade tremenda de dar início a alguma coisa, de fazer nascer uma aventura, de sermos sujeitos da nossa própria história.

Esta ameaça assalta a humanidade mais do que a IA e também explica a crise das humanidades, a crise das utopias, a crise da imaginação do bem-comum. E tudo isto tem que ver com capitalismo e com a mercadorização de todos os aspectos da existência. O capitalismo quer as coisas claras, dada na sua transparência, limites bem definidos, como uma mercadoria que tem de poder ser bem medida e bem acomodada para poder ser valorizada e vendida. Se a democracia fez, no passado, por manter fora do mercado bens essenciais como uma educação pública, ou a saúde, hoje é a própria democracia que opera como um mercado de partidos. Veja-se como a mensagem política se confunde cada vez mais com a linguagem do anúncio comercial.

Nem sequer faltam os pensadores que reflectiram sobre a obsessão pela visibilidade e transparência (Michel Foucault), a falta que as humanidades fazem à formação democrática (Martha Nussbaum), a miséria simbólica destes tempos (Bernard Stiegler), o ódio da democracia aos democratas (Jacques Rancière). Cada intelectual tem a sua lista de referências. Mas, de novo, até uma certa cultura de propriedade de referências, coleccionismo de citações, reconhecimento de estatuto, fazem parte desta avassaladora lógica de sobrevivência (não no sentido de retorno ao básico, que faria mais sentido), mas de nos agarrarmos com unhas e dentes numa ficção imposta de escalada. Urge afrouxar as cordas, não nos compararmos tanto e deixarmo-nos cair um pouco. O mundo ficaria mais conciliado.