Ninguém conhece a origem da frase “que vivas em tempos interessantes!”, popularmente conhecida como a “maldição chinesa”. Mas dizer isto a alguém é o mesmo que lhe desejar uma existência repleta de acontecimentos tumultuosos e reviravoltas. Não por acaso, Eric Hobsbawm, historiador britânico que estudou o conturbado século XX, escolheu a expressão para a sua própria autobiografia (“Interesting Times: A Twentieth Century Life”).

O triunfo do capitalismo liberal e da democracia parlamentar, nos anos 90, parecia ter-nos condenado a todos a uma existência próspera e monótona. Alguns acreditavam mesmo que as guerras e revoluções pertenciam ao passado e que os extremismos de esquerda e de direita, o nacionalismo e o fundamentalismo religioso estavam destinados aos rodapés dos livros de História.

Mas entretanto o mundo deu muitas voltas. A crise de 2007/2008 abalou o sistema financeiro global e provocou ondas de choque que ainda hoje se fazem sentir. Em 2018, a realidade é diferente de há 20 anos. O país mais poderoso do mundo está nas mãos de um populista instável e narcisista, a União Europeia corre o risco de se desfazer, um fascista foi eleito presidente do Brasil e um psicopata governa as Filipinas. A Rússia voltou a viver sob o domínio de um autocrata, a Turquia é agora uma democracia meramente formal e ditaduras como a China, Cuba, o Irão ou a Venezuela continuam de pé, apesar das previsões otimistas avançadas nos últimos 20 anos. Isto demonstra que a vaga de democratização que teve início há 44 anos, com o nosso 25 de Abril, não só foi interrompida como em alguns casos foi revertida. Estamos a assistir à ascensão dos brutos a nível global, graças às redes sociais, que deram a todos o direito à palavra. E não tenhamos ilusões: se os brutos triunfarem, a sociedade aberta de que falava Popper arrisca-se a ser apenas um breve interlúdio luminoso por entre séculos de opressão e obscurantismo. Vivemos, pois, em tempos interessantes.

O que nos deve fazer pensar sobre o que podem as democracias fazer para sobreviver a esta turbulência.

Em primeiro lugar, é necessário ter em conta que estamos habituados a pensar em termos de esquerda versus direita, mas nos tempos em que vivemos a dicotomia mais relevante será entre liberais (no sentido mais vasto do termo) e autoritários. É uma divisão entre quem preza a liberdade individual e outros direitos fundamentais e quem não preza.

Os liberais têm de trabalhar juntos na defesa das instituições democráticas e dos seus mecanismos de checks and balances, o que implica construir um ambiente que torne possível a cooperação, quando necessário, entre democratas de esquerda e de direita, pondo fim ao excesso de virulência, moralismo e azedume a que temos assistido no debate político, devido à sua crescente “futebolização”.

Os partidos democráticos têm também de se distanciar, sem quaisquer reservas, dos corruptos e da corrupção. Não é por acaso que, historicamente, todos os candidatos a ditadores se servem do combate à corrupção como promessa para conquistar o apoio das massas.

Os democratas têm ainda de estar atentos aos anseios dos cidadãos e de defender o Estado social, que  nos últimos 70 anos e até prova em contrário, tem sido o melhor antídoto contra os extremismos. Os democratas não podem abrir a porta aos populistas, justificando-os. Como aquela nossa esquerda que não resiste a justificar Maduro, ou aquela direita que, disfarçadamente, apoia Bolsonaro. Ambas dão tiros nos pés.