Quando foi anunciada a nova seleção da Sight & Sound dos 100 melhores filmes de sempre, causou alguma sensação ver em primeiro lugar o filme “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles” da cineasta belga Chantal Akerman, sendo a primeira vez que uma mulher atinge o lugar cimeiro desta seleção. Teve a audácia de destronar dois daqueles que foram considerados os melhores filmes durante décadas pelos críticos de cinema, “Vertigo”, de Alfred Hitchcock, e “Citizen Kane”, de Orson Welles.

Ao dar origem a uma interessante discussão sobre cinema como arte e denúncia social, fez emergir o pouco consenso em torno de “Jeanne Dielman” como merecedor do primeiro lugar. A essa falta de consenso soma-se o repúdio daqueles que o consideram um produto ideológico de “intelectuais de esquerda”.

A verdade é que este filme não carrega qualquer tradição nem continuidade com o passado do cinema. Pelo contrário, trata-se de uma obra que abre portas invulgares para recantos negros da alma humana, em especial a alma da mulher, durante tanto tempo relegada para segundo plano, enquanto as angústias dos homens ocupavam o ecrã por inteiro.

O filme retrata três dias na vida de uma mãe solteira e viúva, Jeanne Dielman, protagonizada pela atriz Delphine Seyrig, cuja vida se centra no seu apartamento. Observamos a rotina diária meticulosa de limpar a casa, cozinhar, cumprir de forma escrupulosa os horários, receber homens para favores sexuais em troca de dinheiro, pôr a mesa para receber o filho para jantar, durante o qual mal são trocadas palavras.

É uma rotina que a mantém viva. Todos estes detalhes são contados de forma natural e em tempo real, o que explica em parte a sua duração, cerca de 3h30, tornando-o um filme demasiado experimental mesmo para os cinéfilos mais dedicados.

Vi o filme pela primeira vez durante o primeiro confinamento da pandemia, quando eu própria estava imersa numa rotina doméstica diária para me manter sã, hipnotizada pelo ritmo da personagem e pela forma como, pouco a pouco, os seus hábitos começam lentamente a ruir de forma subtil, sem nunca realmente percebermos o que está a acontecer na mente de Jeanne Dielman.

Mas algo está a acontecer. Uma barragem de desespero está prestes a ruir para dar lugar a uma revolta que é libertada de forma chocante no clímax final.

A abordagem feminista de Akerman, cuja obra em anos mais recentes tem vindo a ganhar novo destaque, foi uma pedrada no charco numa altura em que os homens eram os mestres absolutos.

Embora já tivessem surgido novos olhares menos convencionais em torno da mulher, como “Belle de Jour” de Buñuel ou “Repulsion” de Polanski, acaba por ser sempre o olhar masculino a dominar, e nem os filmes escapam à representação do tempo e espaço como matéria ficcional.

Em “Jeanne Dielman” nada parece funcionar como ficção. Há um foco nos aspetos mundanos da vida para manter longe a loucura, mas ela está lá… à espera. Raros são os filmes capazes de expor o retrato da vida abruptamente estilhaçada de uma mulher solitária que mergulha nas profundezas da sua escuridão.

Nesta idade contemporânea, não seremos todas de certa forma Jeanne Dielman, a tentar, com todas as nossas forças, não fitar o abismo? É um filme desconfortável e, de certa forma, aterrador. Se é o melhor filme de sempre não me cabe a mim dizer, mas mantém a sua vitalidade, poder e relevância décadas volvidas.