Chegam ao fim os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito ao Pagamento de Rendas Excessivas aos Produtores de Electricidade (CI). Há um Relatório preliminar e são conhecidas as propostas de emendas dos partidos. E há pelo menos um dado apurado que ninguém contesta: há “rendas excessivas”. Ninguém o nega. Salvo os administradores da EDP. Ou seja, os produtores de electricidade tiveram receitas indevidas na sua actividade. E essas receitas representaram um agravamento das tarifas de energia eléctrica e da factura paga por consumidores domésticos e empresas.

Mesmo se o CDS “não nega a existência de rendas excessivas” e se o PSD escreve, escreve a ver se “elas” não lhes caem em cima da cabeça. Mas é difícil negar, depois de se gabarem que o seu Governo PSD/CDS, “cortou” rendas! Ora, La Palisse obriga, só se pode cortar o que existe! Mas o PSD acaba de tirar um coelho da cartola: as rendas existem e a EDP faz a colecta, mas é para as entregar ao Orçamento de Estado! Uma conclusão do PSD que é irmã gémea da tese de António Mexia, de que a EDP é um abono de família para o Estado.

Com interrogações sobre o seu valor global. Dúvidas sobre a sua origem e natureza. Dificuldades com a legislação que as induz. Mas que existem, existem, como as bruxas espanholas. Mas se existem, há uma pergunta a que se tem de responder com clareza: quem é o pai da criança, de baptismo “rendas excessivas”? Os produtores, EDP, Iberdrola, Endesa, e outros, certamente. Mas estas empresas limitaram-se a sentar-se à mesa e a servir-se: que rico almoço! Mas quem pôs a mesa? Quem serviu o lauto repasto?

Ora esse era o objecto central da CI: causas e responsabilidades políticas pela existência do que não devia existir. Tanto não devia existir, que muitos porfiaram na exigência de tomadas de medidas para que elas não existissem. Há outras questões que saltaram dos trabalhos da CI: sérios indícios de corrupção. Mas estas têm outro foro para serem tratadas: justiça portuguesa. E está em curso, com a chamada «Operação Ciclone».

Percebe-se a dificuldade da EDP e outros intervenientes aceitarem que a AR possa concluir, através dos seus instrumentos de fiscalização política, pela verificação da existência de receitas indevidas. Há até quem proclame, no meio de muita ignorância e manipulação, que a CI feita “frente de esquerda” (coisa notável: uma frente de esquerda com o PSD e o CDS!) visou “o sucesso e os lucros de uma empresa privada” porque “nada incomoda mais as esquerdas radicais do que o triunfo do sector privado” (Joaquim Marques de Almeida, Observador, 14ABR19). Devia haver limites para a veneração e reverência perante o grande capital.

Mas é um direito e dever constitucional da AR perante os portugueses. Os cidadãos, que todos os meses olham para a sua factura da energia (que o Eurostat lhe diz ser das mais elevadas da UE), e cotejam-na com os lucros fabulosos da EDP depois da privatização, as remunerações principescas dos seus administradores e os dividendos acima dos lucros.

Que causas? Qual a política que as produziu? Para quê? De que forma? Que governos e partidos promoveram e/ou apadrinharam essa política? Qual a intervenção dos partidos na Assembleia da República? O que fizeram as ditas entidades reguladoras, ERSE e Adc, que têm por missão defender o interesse público, do Estado e dos consumidores? Ou seja, o Relatório da CI tem que pôr os nomes aos bois. E não os pôs ainda, no meio de muita letra e muito número.

Mas é fácil, partindo do Relatório preliminar, concluir três coisas: a origem primeira das rendas excessivas está na decisão de avançar para a privatização da EDP-EP, o seu desmembramento em várias empresas e a liberalização do sector, com o objectivo de criar um putativo mercado de energia eléctrica; os autores e promotores dessa política foram sucessivos governos do PSD, PS e CDS, com o apoio das respectivas maiorias na Assembleia da República e a bênção inspiradora da UE, e as entidades reguladoras, ERSE e AdC, conheciam e conhecem bem o problema, mas não foram suficientemente pertinazes no saneamento das referidas rendas.

Não, a criança “rendas excessivas” não nasceu de pai incógnito! Aguarda-se ansiosamente pelo Relatório final.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.