Seria bom não nos sentirmos obrigados a escrever sobre Trump e as políticas impostas pela sua Administração. Não cair na armadilha da hipermediatização que usa o choque para se colocar no centro das atenções e, ao concentrá-las, se normaliza pela visibilização constante. Mas é inevitável, e cedo à tentação de o fazer neste espaço pelo segundo mês seguido, pela importância do que está em causa.

Parte do que é surpreendente na estratégia mediática de Trump 2.0 é a forma como parece estar disponível para, pelo menos nesta primeira fase, dividir protagonismo, nomeadamente com as duas figuras marcantes desta nova era: Elon Musk e J. D. Vance.

Podemos especular sobre o que motiva tal abordagem; talvez o nível de controlo sobre os diversos ramos do poder o deixe descansado em relação à extensão da sua influência, seja quem for a figura em quem delegue a atuação; ou talvez sinta que deve começar a preparar as condições para que o legado do Trumpismo se mantenha após este mandato com atores mais novos como Vance – isto, claro, se a tentação de tentar encontrar forma de se prolongar no poder após o segundo mandato não se materializar.

Processo de autocratização em curso

É legítimo perguntar, após este primeiro mês da nova Administração, se existirão condições para que os EUA, a prazo, se mantenham uma democracia liberal ou se, pelo contrário, não estará em curso um processo de tentativa de autocratização ao concentrar grande parte dos poderes no executivo.

A suspeita é alimentada pela tática do costume: dizer-se ou fazer-se algo considerado inaceitável, para em seguida se negar que tal foi feito ou justificar que alguma declaração foi irónica ou humorística. Assim se tenta desarmar, dizendo que não se fez ou não se disse, aquilo que performativamente já foi feito ou expresso, atingindo o objetivo.

No caso, trata-se da alusão frequente do Presidente Trump à possibilidade de poder ser eleito para um terceiro mandato. Alusão que é muitas vezes feita de forma ambígua ou à laia de piada, mas que surge num momento em que diversas ordens executivas tentam impor decisões à margem do Congresso e em que, face a algumas decisões judiciais que bloqueiam essas ordens executivas, o Vice-Presidente Vance veio sugerir “não ser permitido” aos juízes federais controlar o “poder legítimo” do Presidente.

A esse desprezo pela legitimidade dos tribunais junta-se o ataque aos serviços públicos e a agências-chave como a USAID, a coberto de um alegado combate à corrupção e ao poder de uma “burocracia” não eleita, como ficou claro na intervenção de Musk na sala oval – ironicamente feita por um conselheiro também ele não eleito e que, de acordo com a última versão da Casa Branca, nem tem poder de tomar decisões nem é sequer funcionário do DOGE (o departamento que pretende escrutinar a ‘eficiência governativa’). O mesmo que, para além de promover despedimentos em massa e desmantelar agências, tenta ter acesso a dados sensíveis dos cidadãos sem que se saiba o que pode vir a fazer com eles.

Liberdade para desinformar, liberdade para incitar ódio

Simultaneamente, é a nível da política internacional que o efeito disruptivo da Administração Trump é mais palpável porque aí a força impõe-se com um ainda maior desprezo pelas antigas convenções.

A novidade dos últimos dias é o aparente fim da velha aliança entre os EUA e a Europa, com um toque altamente ideológico pelo meio. No imediato, a grande vítima é a Ucrânia. Mas, a longo prazo, o jogo parece ser a desestabilização da própria Europa – tarefa na qual Trump e Putin aparentemente coincidem.

Vem isto a propósito do discurso de J. D. Vance na conferência de Munique. Musk já tinha vindo expressar o seu apoio à AfD alemã. Mas Vance, acabou por ir mais longe ao tentar subverter alguns dos princípios das democracias europeias. O discurso parte de uma lógica de identificação mútua, por parte dos EUA e da Europa, em torno dos “valores democráticos partilhados”. Mas, ao fazê-lo, adota a lógica populista de, em nome da vontade do povo, defender uma versão maximalista da liberdade de expressão (sem consideração pela ofensa alheia, ou mesmo pelo ódio à alteridade) e remeter para a lógica do inimigo.

Na versão de Vance, a Europa está confrontada com duas ameaças, uma externa (a imigração) e outra interna. Acusando os governos europeus de censura através do combate à desinformação e ao discurso de ódio, desvaloriza esses esforços, remetendo-os para a mera supressão de opiniões contrárias. Assumindo que o mesmo se passou nos EUA durante a Administração Biden, adverte que agora há um “novo xerife” do outro lado do Atlântico (Trump) e urge os Europeus a não ter medo das vozes dissidentes e escutar os seus votantes.

À primeira vista, uma interpretação caridosa das palavras de Vance poderia ver nelas um elemento de razoabilidade: ter-se democraticamente em conta as preocupações dos eleitores, escutar quem tem opinião diferente, não aumentar o fosso entre os decisores políticos e os cidadãos.

Mas o problema é que o cerne do discurso mina as próprias condições de possibilidade para esse acolhimento democrático porque aquilo para que aponta é para uma interpretação da liberdade de expressão que normalizaria a manipulação da informação, dos comportamentos dos votantes numa eleição, bem como a desinformação que leva ao negacionismo da ciência e, no limite, também o discurso de ódio. A cobro da defesa da democracia, eis que se torna explícito o interesse em desestabilizar as democracias europeias.

Ucrânia – a vítima recente da velha lógica imperial

E não podemos esquecer a malograda Ucrânia. Sem o apoio e o incentivo dos EUA a guerra nunca teria durado tanto tempo. Não se teriam perdido tantas vidas. Mas estava em causa defender um país vítima de uma guerra imperial movida por Putin e, com isso, salvaguardar a possibilidade de uma futura agressão ao leste europeu.

Ao ceder em toda a linha perante as pretensões de Putin, ao negociar nas costas da Ucrânia e sem qualquer consideração pelos Estados europeus, Trump está efetivamente a a “ajudar Putin a sair do isolamento” internacional, como afirmou Zelensky e, mais, de certa forma a dividir a Ucrânia (que perde território e é forçada a abandonar as suas pretensões futuras de adesão à NATO) ao partilhar esferas de influência ao velho estilo imperial – como outrora se dividiu a Polónia.

A posição americana é neste momento claramente desavergonhada. Se, há dias se sugeria que Gaza se podia tornar uma ‘Riviera’ apoiada pelos interesses imobiliários americanos, agora exige-se o acesso a ‘terras raras’ e outros recursos da Ucrânia numa perspetiva de compensação pela ajuda militar e económica anteriormente prestada.

Agora sabemos o que encontramos do outro lado do Atlântico. Resta saber que papel poderá a Europa ter neste novo cenário de uma política internacional determinada por disputas territoriais e divisões de esferas de interesse entre potências – a ver se, pelo caminho, o medo não nos faz perder os nossos princípios.