“Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
A frase inaugural de Anna Karenina de Tolstói poderia servir de metáfora para o estado da Europa contemporânea. A União Europeia, essa família alargada e imperfeita, enfrenta um dilema comum: como lidar com uma Rússia que desde a queda do Muro de Berlim nunca deixou de procurar formas de se insinuar, dividir e manipular. Mas cada Estado-membro é infeliz à sua maneira: uns pela vulnerabilidade energética, outros pela fragilidade institucional, outros ainda pela permeabilidade social e política à desinformação.
No domingo passado, a Moldávia foi palco de mais um teste à resistência europeia. As eleições moldavas resultaram numa vitória clara dos europeístas, sinalizando a força do apelo ocidental, mas também a persistência das sombras de Moscovo. O Kremlin voltou a investir em propaganda, manipulação digital e financiamento obscuro para tentar condicionar o processo. Não conseguiu impedir a vitória pró-europeia, mas deixou evidente que a Moldávia ainda está longe de se sentir plenamente europeia. O resultado foi uma vitória política da União, mas o caminho continua cheio de muros por transpor.
Este episódio é apenas o mais recente de uma longa lista. A Rússia, desde o fim da Guerra Fria, tem refinado as suas técnicas de ingerência: campanhas de desinformação contra a integração da Estónia na NATO; a ingerência nos referendos britânicos e catalães; o financiamento de partidos de extrema-direita em França, Itália ou Áustria; os ataques cibernéticos contra instituições alemãs; as campanhas de manipulação durante as presidenciais americanas de 2016. O campo de batalha deixou de ser só o da geografia física para se tornar o da geografia mental. Moscovo percebeu que não precisa só de tanques para fragilizar os seus adversários, mas ajuda muito manipular a perceção, corroer a confiança e amplificar medos. É isto que temos hoje.
E é precisamente o medo o grande trunfo da Rússia. O medo dos europeus de que as eleições não sejam limpas. O medo de que drones hostis atravessem o espaço aéreo europeu sem serem detetados. O medo de que uma mão invisível influencie governos democraticamente eleitos. O medo de que, mais do que uma vítima colateral militar da guerra na Ucrânia, a Europa se torne uma vítima colateral política de uma guerra psicológica que mina a sua coesão interna.
A interferência russa funciona como um veneno lento. Quando uma sociedade começa a duvidar do valor do voto, a democracia perde força. Quando as pessoas acreditam que os seus líderes podem ser marionetas de interesses externos, a confiança desaparece. E quando os Estados se dividem entre quem resiste e quem cede, a União Europeia perde aquilo que a torna única: a coesão. Moscovo não precisa de vencer eleições para vencer politicamente. Basta-lhe semear a dúvida, corroer a legitimidade e amplificar as fissuras internas que já existem. Aproximam-se as eleições na Roménia, na Bulgária, nos Países Baixos e, depois, em França.
O objetivo último de Moscovo não é ganhar batalhas isoladas, mas sim provocar a fratura do projeto europeu. Putin já percebeu que não precisa só de tanques para derrotar a União: basta-lhe esperar, com paciência, pela eleição certa que abra a fissura que tanto deseja. Fê-lo em 2016, quando a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos lhe comprou quase uma década de tempo político e estratégico, permitindo-lhe respirar enquanto a coesão ocidental se debilitava. Agora, com a mesma frieza, volta-se para França, onde deposita a esperança de uma vitória que não apenas o favoreça, mas que fragilize de forma irreparável o eixo central da Europa.
Uma vitória de Bardella ou de Le Pen não seria apenas um triunfo eleitoral interno francês: seria a quebra simbólica e prática da espinha dorsal da União. Para Moscovo, França é a chave que pode abrir a porta à divisão europeia, colocando em causa a solidariedade atlântica, a resposta à guerra na Ucrânia e, sobretudo, a ideia de que o projeto europeu é irreversível. Tal como em Washington, Putin não precisa de intervir diretamente: basta-lhe esperar, explorar os medos, financiar a dúvida e deixar que as urnas façam o trabalho de erosão política que os seus exércitos já não conseguem garantir.
Os exemplos são inúmeros. No Reino Unido, a ingerência russa durante o referendo do Brexit nunca foi totalmente esclarecida, mas a simples suspeita já cumpriu o seu papel: corroeu a confiança num dos momentos mais críticos da história britânica. Em França, os laços financeiros entre bancos russos e partidos da extrema-direita continuam a levantar dúvidas sobre a independência política de certas lideranças. Na Alemanha, relatórios oficiais confirmam que diplomatas e agentes ligados a Moscovo continuam ativos na espionagem industrial e política, mesmo depois da redução drástica do corpo diplomático russo. E nos Estados Unidos, a própria eleição presidencial tornou-se, em 2016, um palco global da capacidade russa de manipulação digital.
O que Moscovo procura é constante: desgastar a Europa, desgastar os seus líderes, desgastar a confiança dos cidadãos. A cada ataque informático, a cada fake news, a cada interferência eleitoral, o objetivo não é apenas um ganho imediato. É prolongar a sensação de vulnerabilidade, é criar a perceção de que as democracias são frágeis e permeáveis, enquanto os regimes ao estilo russo são sólidos e eficazes. É impor ao Ocidente uma guerra psicológica em que cada vitória de Moscovo se mede em dúvidas plantadas, em suspeitas espalhadas, em fissuras abertas.
Quem tem medo da Rússia? A resposta deveria ser: todos nós. Porque não se trata apenas de recear uma invasão militar ou uma escalada nuclear. Trata-se de reconhecer que o maior perigo hoje é interno: é a erosão da confiança que mantém vivas as nossas democracias. A Rússia já percebeu que não precisa de derrotar a Europa em campo aberto: basta-lhe garantir que os europeus começam a desconfiar uns dos outros, dos seus líderes, das suas instituições. Que a coesão política e económica cede em toda a linha.
O episódio da Moldávia, as campanhas de desinformação nos Bálticos, as suspeitas sobre eleições ocidentais, os drones que atravessam os céus sem aviso — tudo isto faz parte de uma mesma estratégia. A Europa tem de perceber que a sua coesão é o verdadeiro alvo. Se Moscovo conseguir dividir a União entre um núcleo resistente e uma periferia vulnerável, o projeto europeu ficará irreparavelmente fragilizado.
A defesa da Europa começa muito antes das fronteiras físicas. Começa na capacidade de resistir à manipulação, de fortalecer a literacia mediática, de proteger os processos eleitorais e de criar resiliência social. A batalha decisiva não é militar: é política, informativa e psicológica.
Tolstói tinha razão: cada família infeliz é infeliz à sua maneira. A União Europeia será tanto mais forte quanto mais souber transformar as suas infelicidades particulares numa resposta comum. Caso contrário, o medo continuará a ser a arma mais poderosa de Moscovo — e nós continuaremos a ser, não apenas vítimas colaterais da guerra, mas cúmplices involuntários da nossa própria fragilidade.