Ao longo do último ano, as contas públicas de Portugal passaram de um saldo quase nulo para um défice que ficou na casa dos 7%. O confinamento necessário face à situação pandémica resultou num crescimento das necessidades de financiamento.

Mais despesas, em rubricas como subsídios para apoiar setores com quebra de atividade e investimento na saúde. A quebra de receitas, com redução de impostos recolhidos sobre vários setores com a atividade económica atrofiada. Tudo isto tem-se conjugado para fazer crescer a necessidade de recorrer a financiamento para o Governo poder operar.

Para já, a política do Banco Central Europeu tem garantido os juros baixos nas emissões de dívida por parte dos governos. A necessidade de recorrer ao financiamento vai-se mantendo, dado o fosso orçamental, que continua a ser cavado pela demora da chegada da vacinação em grande escala e pela necessidade de impor novas restrições económicas face à recente deflagração de casos de Covid-19.

Entretanto, vários sinais indicam que será difícil contar com esta política ad aeternum. As condições económicas e políticas do financiamento fácil vão-se retraindo, e serão provavelmente acompanhadas pelo enfrentamento das consequências negativas das moratórias ao crédito. A pilha de dívida do Estado, continua em níveis colossais desde os anos da troika, e o dissipar de qualquer ilusão de uma recuperação rápida da economia não facilitará a gestão desta.

O plano de estímulos da Comissão Europeia constitui um avanço para o que costuma ser a política descoordenada do espaço comum europeu, mas os 13 mil milhões de euros a que este corresponde não serão a varinha mágica que resolve os desafios orçamentais dos cofres portugueses.

Assim, mais tarde ou mais cedo, a questão nacional regressará ao mesmo tema de há uma década atrás: como equilibrar as contas? Para compreender quais as escolhas do Governo no futuro, nada melhor que os acontecimentos recentes na TAP – um dos epicentros do colapso económico do último ano – para nos elucidar.

A razia atravessa a TAP por inteiro. Cortes nos salários, menos 1.800 pessoas empregues, suspensão de seguros dos funcionários, aumento dos horários de trabalho, diminuição dos dias de férias, a lista é longa.

O impensável é colocado em cima da mesa com a proposta apresentada aos sindicatos, nos termos da qual os trabalhadores se comprometem a: “não recorrer a meios de luta laboral relativamente às matérias constantes do presente acordo de emergência”, por outras palavras, o direito à greve fica vedado. Com isto, o acordo contempla a compra do direito à greve, aproveitando a situação vulnerável dos trabalhadores para conseguir o melhor preço.

Este é o plano concebido, desenhado e apresentado pelo Governo. É um plano do Governo português que chega ao ponto de, segundo um sindicato, “retirar um pequeno subsídio de cerca de uma centena de euros por ano para pais de crianças portadoras de deficiência e outro subsídio de valor semelhante para material escolar dos filhos”.

Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas, consegue chegar ao ponto de defender sem filtros a vedação do direito à greve prevista no acordo como referente apenas “às matérias do acordo”. Ou seja, os trabalhadores poderão exercer o direito à greve, exceto se esta for destinada a contestar a amputação dos seus direitos.

Supõe-se então que o direito à greve circunscrever-se-á a assuntos como a qualidade do café da máquina de serviço ou a cor das fardas. Quem sabe, o Senhor ministro aproveitará para acordar o fim do direito ao voto em eleições nacionais, mas só no caso da escolha ser diferente da recomendada pelo Partido Socialista.

Ao longo dos últimos anos, o Governo já tinha gerido o setor da aviação colocando o interesse pelos lucros à frente de qualquer consideração pela agenda climática, ao apostar na construção do novo aeroporto no Montijo. Agora, perde-se a oportunidade de adaptar a TAP a uma escala conciliável com as metas climáticas, que substitua o máximo número de rotas possíveis por meios alternativos, como a ferrovia, e que inclua os interesses dos trabalhadores na conversa. Prefere, ao invés, privilegiar interesses de acionistas e credores privados.

A situação orçamental vai-se deteriorando e em breve o país poderá assemelhar-se a uma TAP em grande escala, em que os interesses dos credores do Estado sejam contrapostos aos interesses da população em geral. No caso da TAP, a solução escolhida é a de atropelar os critérios sociais. Quando serviços públicos, pensões, salários de funcionários públicos e impostos sobre bens essenciais estiverem em jogo, fica a questão: a TAP foi apenas um ensaio, e o Governo estenderá a razia a toda a sociedade?