Apesar de amaldiçoada, a geoestratégia continua a ser uma ferramenta poderosa para compreender o comportamento das grandes potências na política internacional. Para entender os atuais desenvolvimentos na Venezuela é fundamental ter em conta os interesses dos EUA na região.

O catalisador específico da atual crise foi o telefonema do vice-presidente Mike Pence a Juan Guaidó, manifestando-lhe apoio caso este se autoproclamasse Presidente da República interino, o que aconteceu no dia seguinte, aplaudido de imediato por Washington. Já em 2002, tinha ocorrido algo semelhante, quando os Estados Unidos apoiaram e reconheceram um grupo de extrema-direita que depôs Chávez, tendo a legalidade democrática sido reposta de imediato pelos militares, acompanhada por uma imensa mobilização popular.

A justificação ideológica para a crise venezuelana encontra-se na doutrina Monroe. Os EUA pretendem manter uma posição de força no continente americano, e impedir que potências rivais se intrometam na sua esfera de influência exclusiva, algo que faz de uma forma sistemática desde 1823.

Que o diga Espanha, uma das primeiras vítimas dessa opção geoestratégica. A materialização daquela doutrina tem sido feita através do derrube sedicioso de vários presidentes democraticamente eleitos na América Central e do Sul, não alinhados política e ideologicamente com a grande potência. Entre outros, Guatemala (1954), República Dominicana (1966), e Chile (1973). A Venezuela está colher os frutos do atrevimento em pretender ser um baluarte da resistência às aspirações hegemónicas da grande potência na região.

Os liberais apoiam as pretensões de Guaidó argumentando com a restauração da democracia, e com o sonho de uma ordem liberal que trará a paz eterna à humanidade. Este argumento explica muito pouco do que está a acontecer. É ingénuo explicar os acontecimentos com base na devoção aos valores da democracia, sobretudo se tivermos presente o passado de Guaidó. As riquezas naturais do país, nomeadamente os hidrocarbonetos, explicam apenas parcialmente.

O âmago da questão é de natureza geoestratégica. As grandes potências não permitem intrusos nem desafiadores nas suas coutadas securitárias, onde exercem hegemonia política e económica. Da mesma forma que os EUA não permitem regimes não alinhados na sua esfera de influência, leia-se, no continente americano, também a Rússia e a China não os permitem nas suas zonas de segurança. A Rússia, na Ucrânia, Cáucaso e Ásia Central, e a China no Mar do Sul da China. Do ponto de vista geoestratégico, as grandes potências comportam-se de formas muito semelhantes. Este argumento é o que possui maior poder explicativo.

As operações de “mudança de regime” subordinam-se àquela lógica. A que está em curso na Venezuela não é diferente de outras, nomeadamente as que ocorreram no espaço securitário da Rússia, utilizando os mesmos métodos, referências e inspiração. Como as reais motivações das “mudanças de regime” são normalmente difíceis de sustentar, são apresentadas à opinião pública como um imperativo para defender elevados princípios éticos e políticos. Para passar a “mensagem certa” e “demonizar o outro” contribuem fazedores de opinião amestrados.

Para chegarmos onde chegámos na Venezuela concorreram vários fatores. Um observador neutral não pode alijar a responsabilidade de Maduro pelas políticas erradas que deterioram a economia do país e a conduziram ao estado conhecido, mas também não pode omitir as consequências desastrosas provocadas pela redução do preço do petróleo – sobretudo a partir de 2014 – e pelas sucessivas sanções económicas impostas pela Administração Obama, agravadas por Donald Trump. Os desenvolvimentos políticos no Brasil, agora amigo de Washington, terão contribuído decisivamente para que a crise tenha deflagrado nesta altura e não antes.

Embora os argumentos para justificar a ingerência na política interna venezuelana se revistam de uma fraseologia benigna (restaurar a democracia, exterminar a tirania, etc.), o que está em causa, como no passado, é a preservação da hegemonia da grande potência. São os cálculos geoestratégicos que determinam o rumo dos acontecimentos. Em política internacional, ao contrário daquilo defendido por algumas correntes de pensamento, o que prevalece são os interesses e não os princípios e os valores. Se não és meu amigo és meu inimigo. A crise venezuelana é apenas mais um caso empírico que confirma a teoria.