Este ano trouxe surpresas que parecem ter lançado o mundo num novo rumo político, económico e social. Primeiro o Brexit, depois Trump. Mas o ano ainda não acabou: o referendo italiano do dia 4 de dezembro poderá parecer muito menos polémico, no entanto, é a eleição que vem cimentar os grandes “avanços” que se fizeram no retrocesso das relações internacionais e na coesão entre os países do ocidente. É mais uma eleição que poderá alimentar os bodes expiatórios do nacionalismo. Em linha com as anteriores eleições, não se trata da velha e possivelmente ultrapassada dicotomia entre esquerda e direita, mas antes de apurar se há futuro para as visões civilizacionais que tivemos até aqui, neste caso enformadas na “velha” Europa.

À primeira vista é um referendo “inocente”, normal e, acima de tudo, de (re)arranjo institucional. Aliás, para além de inocente, muito necessário: desde 1945, Itália teve nada menos que 65 governos. É evidente que é necessário introduzir reformas constitucionais para trazer maior equilíbrio a um sistema que, aparentemente, não consegue gerar mandatos capazes de definir uma visão política com a mínima continuidade. Consequentemente, a proposta que está subjacente no referendo visa facilitar a criação de maiorias parlamentares e desbloquear um bicameralismo (curiosamente definido como “perfeito”) que impede a ação legislativa, leia-se também, o progresso.

Porém, será que os italianos culpam o “arranjo” institucional pelos problemas económicos do país? O atual espetro político-partidário italiano ilustra bem o que os Italianos sentem. Entre os quatro principais partidos, apenas um é pró-europeu: o Partido Democrático de Matteo Renzi, atualmente no poder. Aparentemente, o euro não tem tratado bem o país que, apesar de ser uma das economias mais pujantes da UE e do mundo, tem hoje um PIB per capita equivalente ao que tinha antes da entrada na moeda única. Em termos de capacidade produtiva, o índice de produtividade total dos fatores – indicador que permite medir a evolução tecnológica ao longo do desenvolvimento produtivo – desceu 0,3% por ano em relação às outras economias da zona euro entre 1998 e 2014. Em França e na Alemanha cresceu anualmente cerca de 0,7 e 0,8, respetivamente.

Logo, quando o líder do único partido europeísta afirma que se demitirá caso o resultado do referendo rejeite as propostas de reforma institucional num ano de eleições marcantes, somos levados a pensar em desfechos mais abrangentes: Italexit! Com um Partido Democrático fragilizado e o partido Cinco Estrelas apenas a uns meros pontos percentuais de distância, revigorado pelas recentes vitórias nas Câmaras de Roma e de Torino, bem como uma coligação certa entre o Partido da Liberdade de Berlusconi e o partido independentista da Liga Norte (que obteve um resultado quase idêntico ao Partido Democrático), a perspetiva de novas eleições legislativas não é reconfortante para quem defende a UE.

A tensão latente está a preocupar os investidores. As taxas de juro sobre a dívida italiana têm vindo a subir devido à perspetiva do “não” italiano. Ningém quer eleições neste cenário. Como nós sabemos (infelizmente muito bem), esta perspetiva alimenta a necessidade de intervenção externa; uma nova troika. O problema é que Itália já tem a segunda maior dívida pública da UE sem precisar de uma intervenção externa, algo que foi sempre tolerado e que constava como exceção ao pacto de estabilidade. Outro problema, ainda maior, é que Itália é o equivalente nacional a um “too big to fail”. Não haverá ‘bailout’ ou troika que aguente. Se isso acontecer, a única solução será a saída do euro. Ou seja, os dois desfechos possíveis são muito negativos e reforçam-se mutuamente.

O “sim” parece ser o resultado mais vantajoso. No entanto, também traz problemas. Ao facilitar a formação de maiorias parlamentares, abre caminho a um eventual governo liderado (com maioria) apenas por Beppe Grilo, o palhaço, ou por um descendente político de Berlusconi, agora com o “valor acrescentado” de ser anti-europeu. Por outro lado, esta reforma pretende retirar o sufrágio direto da eleição dos membros do Senado, substituindo-o por um processo de nomeação que favorece o poder local. Ora, em Itália, um país que reconhecidamente tem problemas com a corrupção, dar mais ênfase ao poder local é agravar este problema. E, se a UE é frequentemente usada como bode expiatório para tudo o que corre mal internamente, este cenário irá seguramente deitar mais achas para a fogueira, uma fogueira anti-europeia que já arde bem. Parece que chegamos a uma relação “lose lose” inevitável. É certo que a UE e o euro têm trazido alguns problemas, mas usada como bode expiatório, a UE torna-se a fonte de todos os males e o nacionalismo emerge como a única cura.

Sim ou não, é algo indiferente. O rumo de Itália parece traçado e, pior, vem no seguimento das duas eleições com maior potencial impacto de que há memória nas gerações pós-Maastricht, pós-muro de Berlim. A UE afunda-se e parece não haver travão. É esperar para ver pois, felizmente, nem sempre tudo corre como esperado. Por vezes surgem soluções inesperadas. Em Itália não seria a primeira vez, como a tomada de posse de Mario Monti pôde atestar. Se já entramos numa lógica de “lose lose” num dos países fundadores da Comunidade Europeia, tudo indica que estaremos a falar de uma falecida Europa.