Nesta época é costume reflectirmos sobre o ano que passou. E a minha tentação, também como de costume, foi pensar que 2022 foi, a vários títulos, atípico.

Vejamos.

Portugal começou o ano com a ideia de que o impacto fundamental da pandemia tinha passado, que a vida estava a regressar a uma certa normalidade, e com a economia a dar sinais de retoma.

Logo em Janeiro as eleições produziram resultados estranhos. Não se esperava uma maioria absoluta, atendendo ao desgaste do partido do Governo ao fim de seis anos de poder. Também não se previa o desaparecimento do parlamento de um partido histórico. A incapacidade do maior partido da oposição para capitalizar o desgaste do PS foi uma surpresa relativa. Mais normal foi a redução da representação dos partidos mais à esquerda, culpabilizados pela crise aberta pela rejeição do Orçamento do Estado, assim como o crescimento à direita de formações políticas que assumem a representação de tendências que já não se reviam no quadro dos partidos tradicionais.

A repetição das eleições no círculo eleitoral da Europa atrasou por um mês a instalação da Assembleia da República, a tomada de posse do Governo e a aprovação do Orçamento de Estado.

E a partir daí, os acontecimentos, uns mais comuns e outros menos, sucederam-se a uma velocidade vertiginosa. Mas já sem novidades.

Tivemos a reanimação da interminável discussão sobre o aeroporto de Lisboa, que quase levou à demissão de um ministro; a TAP e o Novo Banco; as perpétuas querelas sobre o preço dos combustíveis e da energia em geral; comentadores a insistirem no cansaço do primeiro-ministro e na falta de frescura do Governo; as aparentes tensões entre membros do Governo; as afirmações, com base em dados estatísticos diferentes, de que Portugal está ou não a perder competitividade; as dúvidas se Portugal está a convergir com a Europa ou a perder posições para países supostamente mais atrasados.

No Verão tivemos as cíclicas questões sobre a falta de trabalhadores no sector do turismo, os incêndios florestais e os efeitos da seca; a situação do SNS e as deficiências e irregularidades no funcionamento das urgências hospitalares, que culminaram com a demissão da ministra; a reacção da Igreja Católica às denúncias de agressões sexuais a menores por padres.

No Outono, o efeito das fortes chuvas, e a magna questão de saber quem é que esteve ou não esteve no terreno; o aumento sazonal de infecções causadas por vírus que pressionam os Hospitais; as críticas ao Presidente da República pelo número de viagens e pelas declarações sobre múltiplos assuntos; os muitos “casos” de incompatibilidades ou actuações de membros do Governo, em posições anteriores e na actualidade, que produziram mais umas 10 demissões, umas imprevistas outras nem tanto, atendendo aos antecedentes.

No que toca a Portugal, concluo assim que a minha premissa inicial não se confirma. O ano de 2022 não se revelou substancialmente diferente dos outros. Estivemos entretidos a apreciar temas do dia-a-dia, uns mais relevantes do que outros, mas que servem para encher páginas de jornais e alimentar comentários e entrevistas nas televisões. Mas ninguém teve verdadeiramente a preocupação de lançar uma discussão séria sobre o paradigma de desenvolvimento nacional (que país queremos ser e como vamos fazer para lá chegarmos), que é o que nos deveria preocupar a todos.

Ao contrário, na frente externa o ano de 2022 foi efectivamente diferente dos outros.

A guerra na Ucrânia interrompeu o mais longo período de paz que vivemos na Europa nos últimos 500 anos, se esquecermos a dissolução da Jugoslávia nos anos 90, geograficamente mais localizada. A “operação militar especial” Russa, que demonstra que as linhas de força determinantes da sua doutrina geoestratégica, velhas de mais de 300 anos, continuam válidas, levou a que os países ocidentais se congregassem numa atitude defensiva inédita – embora herdeira da noção clássica que a sobrevivência da Europa depende da capacidade que tivermos para conter a Rússia no seu próprio espaço. O Ocidente uniu-se numa posição enérgica concertada sob a forma de condenações diplomáticas, do alargamento da NATO, de apoio à Ucrânia, em termos económicos e de abastecimento de material de defesa, e de sanções à Rússia.

Este quadro gerou dificuldades sobretudo no abastecimento de cereais e energia, de que resultou um enorme aumento da inflação, problemas sérios no fornecimento de produtos alimentares a países terceiros, e a necessidade de reajustamentos na circulação de produtos energéticos à escala global.

Entretanto, os Estados Unidos preocupam-se com questões internas, criando um vazio na cena internacional que a China e a Índia estão claramente a aproveitar para se reposicionarem como potências globais, e não meramente regionais.

Ou seja, o ano de 2022 poderá ter aberto a porta a uma reorganização fundamental da ordem mundial.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.