O Relatório sobre a reforma do modelo de supervisão financeira propõe ao Governo a criação de uma nova entidade, o Conselho de Supervisão e Estabilidade Financeira (CSEF), mantendo os atuais reguladores financeiros, e atribuindo-lhe o papel de garantir a troca regulada de informações e a coordenação da atuação dos supervisores setoriais. Sem prejuízo dos problemas que a criação do CSEF resolverá, é todavia difícil compreender a recomendação que este seja investido de competências em matéria de concorrência.
De facto, o Relatório propõe que certos poderes em matéria de concorrência, como a da deteção e avaliação de práticas anticoncorrenciais nos mercados financeiros, passem para o CSEF e também que as atuais contribuições anuais da CMVM e da ASF para a Autoridade da Concorrência (AdC) sejam “revistas”.
Ora, é muito duvidoso que estas alterações originem qualquer benefício. Desde logo, esta dispersão de competências não vem responder a qualquer necessidade real. Não é comum ouvirem-se críticas à AdC por falta de expertise em matérias financeiras. Muito pelo contrário. Em cerca de 15 anos de funcionamento, a AdC adotou quase meia centena de decisões no sector, todas elas numa articulação pacífica com os reguladores sectoriais. É por isso difícil entender a mudança proposta. Há quem diga, porventura com razão, que serve apenas para justificar a criação do CSEF…
Depois, uma reforma nestes moldes suscitará questões que hoje em dia não existem e que se refletirão na necessidade de: capacitar o CSEF para interpretar as normas de concorrência em linha com o Direito da UE; garantir que o CSEF interpreta estas normas de forma coerente com a AdC; mitigar a incerteza resultante da nova arquitetura de competências; mitigar o impacto que a diminuição das contribuições financeiras para a AdC terá na sua independência e capacidade de atuação.
Capacitar uma nova entidade para interpretar as regras de concorrência de forma coerente com a UE não é tarefa fácil. Trata-se de uma missão complexa que exige uma elevadíssima especialização que tem sido garantida, até aqui, pela AdC. Uma vez que o CSEF não vai substituir a AdC mas apenas ficar com competências sobrepostas, passaremos a ter duas entidades com “elevadíssima especialização” na mesma área. Boa ideia? Tudo indica que não.
Depois, há a articulação prática do CSEF com a própria AdC. Ter dois reguladores diferentes a aplicar as mesmas regras – por definição complexas e em evolução constante –, é um desafio enorme para ambos, e comporta uma margem de erro assinalável. Não é difícil imaginar que cresça o número de litígios e que se tente usar o que um diz para condicionar o outro.
Há ainda o tema da nebulosa em que se transforma o sistema. Não vai ser fácil para empresas e consumidores perceber a nova arquitetura da dispersão de competências. Além disso, depois de a AdC ter passado os últimos anos em roadshows pelo país a explicar as suas competências e a investir em ferramentas para a aproximar dos consumidores e das empresas, toca a, no sector financeiro, alterar tudo outra vez. E sem benefícios claros.
Por fim, a sugestão de que as contribuições anuais da CMVM e da ASF para a AdC sejam “revistas” traduz-se num sério desinvestimento na Autoridade da Concorrência e na missão que esta prossegue. Recorda-se do que disse Poul Thomsen, representante do FMI na troika, à chegada ao nosso país em 2011? Qualquer coisa como Portugal precisa de uma Autoridade da Concorrência forte que garanta mercados competitivos que dinamizem a economia. Parece que já foi há muito tempo.