“Liberdade significa responsabilidade. É por isso que a maioria dos homens a teme.” – George Bernard Shaw

A passagem pelo 46.º aniversário do 25 de Abril, apresenta em 2021 um renovado simbolismo. O país encontra-se num complexo ciclo da sua vida democrática, condicionada por uma pandemia sem precedentes, e que colocou o país na necessidade de suspender a vida regular, condicionando atividade económica, restringindo a mobilidade dos cidadãos e impondo regras sobre tradições e costumes familiares que têm criado um desgaste emocional sobre os portugueses. Mas é um momento que também traz consigo ansiedades sobre o futuro. O processo de vacinação em massa tornou-se num contrarrelógio para que o país possa voltar a respirar economicamente, e os constantes atrasos e dúvidas relacionadas com algumas vacinas são inesperados e indesejados obstáculos. Por outro lado, as ajudas europeias estão ainda distantes e parece difícil de entender para o mais comum dos portugueses a forma como irão ajudar, em tempo útil, os que têm o seu pequeno negócio afetado, ou que convivem com o espectro do desemprego ou da expectativa de incerteza relativamente ao que vai ser o seu futuro.

É por isso que o espírito de abril ganha aqui uma importância acrescida. Tal como em 1974, e já o referi anteriormente, acima da conquista política, abril trouxe consigo inegáveis conquistas de índole social, económica e humanitária. Em 2021, a vacinação e os pacotes europeus de transformação económica são uma oportunidade para cicatrizar as feridas da pandemia, e para enfrentar a próxima década, que será de grande transformação económica, mas também social. Não devem ser desperdiçadas, mas sim aproveitadas para promover uma transição que devolva confiança e esperança aos portugueses de uma vida melhor. Precisamos de reformar já Portugal, para cumprir um novo abril no século XXI.

Cicatrizar as feridas económicas causadas pela pandemia, combater a inércia e reformar para crescer
A pandemia deixou abertas feridas que deixam a nu as fragilidades económicas do país, e devem ser encaradas de forma séria, pois sem essa, dificilmente cicatrizarão. A verdade dos factos não é difícil de identificar – Portugal não cresce, nem tem sido capaz de criar riqueza económica efetiva nas últimas décadas. É por isso que o país continua a perder continuamente posições nos principais indicadores de competitividade dentro da União Europeia, e isso reflete-se evidentemente na qualidade de vida dos portugueses – por exemplo, a convergência do nível de vida dos portugueses com a média europeia estagnou desde 1995, e Portugal caiu cinco lugares em termos de PIB per capita, de 16.º para 21.º entre os 27 países da União Europeia.

A ilusão de sucesso tem vindo a ser ultrapassada pelas evidências de um Estado que muito tributa, batendo novos máximos no que diz respeito à carga fiscal (35% em 2020), mas que pouca capacidade de resposta tem quando é tão necessário para fazer face a crises inesperadas – a resposta orçamental nacional para o impacto da Covid-19 foi a terceira pior da União Europeia, com cerca de 3,9% do PIB, apesar de ser uma das economias mais afetadas e expostas a um dos sectores (o turismo) que vai levar mais tempo a recuperar. Com um montante global de dívida elevado, que se tornará ainda maior depois da crise, Portugal não pode continuar a viver na ilusão criada pelas circunstâncias extraordinárias dos últimos anos (com taxas de juro muito baixas, e um clima económico favorável europeu). Este manto protetor do Banco Central Europeu não vai durar eternamente, e uma subida de taxas de juro, ainda que de forma moderada, pode provocar sérios problemas a um país altamente endividado, seja Estado, empresas ou sobretudo as famílias.

A solução não pode ser a mesma de sempre. Há que começar a pensar mais em criação de valor, e menos em novos impostos ou em balas de prata, como a renegociação das dívidas. Sobretudo é necessário ter uma agenda para combater o imobilismo, pensada para sermos um país menos dependente da União Europeia, um país que utilize a Europa em favor da economia e não em favor da agenda política e partidária de circunstância. Uma agenda que pense além da geração que governa, e no que pode e deve deixar para as próximas gerações como legado, para além de dívidas. Combater a inércia reformista que tomou conta da agenda é sobretudo reformar para sermos mais competitivos, e utilizar esta oportunidade de transformação europeia – que é única e pode moldar as próximas décadas – para criar sectores económicos mais resilientes, e geradores dos postos de trabalho do futuro.

Devolver a esperança, um novo contrato social com os cidadãos
Não é um tema novo, embora se tenha mantido relativamente distante de Portugal durante bastante tempo. Existe um progressivo desapontamento da sociedade com o chamado status quo e com a forma como a sociedade tem vindo a recompensar os seus cidadãos. Estas são razões intimamente ligadas a uma erosão do conceito tradicional de vida, sobretudo devido à falta de crescimento económico, perda consecutiva de poder de compra das classes médias, e consequentemente da sua qualidade de vida. A deslocalização da indústria para outras regiões, a crise do euro e as inevitáveis alterações nos benefícios sociais trouxe desconfiança adicional relativamente a respostas institucionais e de governo.

Um dos desafios será por isso reconstruir essa ponte com os cidadãos, e vencer o descontentamento popular com a sociedade moderna, que tem incutida a noção de que a democracia pós-euro falhou e desiludiu nas promessas e ilusões que criou. Esta é por isso a oportunidade de sair do longo sono em que Portugal parece ter caído desde o princípio do século XXI – acumulando taxas de crescimento real do PIB baixas, assim como da produtividade ou dos rendimentos das famílias.

O Estado deve, por isso, promover políticas públicas que possam incentivar a reposição da confiança num modelo de sociedade que seja sustentável, e onde seja possível ascender socialmente com critérios claros, baseados em métricas de mérito e esforço individual. E onde o valor gerado pelos impostos pagos seja percetível em termos do retorno de serviço público, e em que o Estado seja mais parceiro para que os portugueses possam ter ambição para crescer do que para colher impostos e tributações.

Cuidar da democracia, restaurar confiança nas instituições
Muito do que é necessário para reconstruir um novo contrato social com os portugueses passa por reconstruir os valores de uma democracia participativa e livre. É imperioso defender a democracia numa fase da história onde a nível global existem evidências de que existe uma profunda deceção com o funcionamento da democracia e dos sistemas de representação política, ainda que se mantenha um alargado consenso no que diz respeito ao regime e aos seus princípios-matriz.

Este facto, que explorei no ensaio “A pandemia enfraqueceu a democracia”, está evidenciado no índice de democracia, produzido desde 2006 pelo Intelligence Unit da “The Economist”, onde a deterioração progressiva da prática da democracia nas democracias globais, mesmo nas economias mais desenvolvidas ocidentais – o índice caiu de 5,44 pontos em 2019 para 5,37 pontos índice, a leitura mais baixa desde 2006, aquando da primeira divulgação do mesmo.

Neste relatório, Portugal foi classificado em baixa, passando a ser considerado como “país democrático com falhas” em vez de “país totalmente democrático”. É verdade que as restrições implementadas para controlar a pandemia foram fator de relevo, mas o relatório apontou também a redução dos debates parlamentares ou ainda “a falta de transparência no processo de nomeação do presidente do Tribunal de Contas”. Portugal recuou assim para uma pontuação de 7,9 pontos (8,03 em 2019), e um 15.º lugar na pontuação da área regional onde se insere – Europa Ocidental.

É, portanto, de enorme relevância cuidar da qualidade da democracia, e tomar decisões que contenham o que podemos designar por rebelião de eleitores, que têm aderido a teses mais céticas ao projeto europeu e de pendor populista – e que em Portugal têm sido visíveis nos últimos atos eleitorais. E faz sentido olhar para os fatores de descontentamento dos eleitores, e compreender o que está a afastar o eleitorado do centro político e tentar resolver reformando e conferindo medidas que permitam restaurar a confiança.

Alguns dos fatores identificados nos dias de hoje estão intimamente ligados a processo de decisão política que criam distanciamento, criando centros de decisão junto das elites governamentais, em vez da criação de mecanismos democráticos de participação popular que permitam maior envolvimento da população. Alternativamente, existe uma crescente influência decisora de instituições e similares que não são eleitas e por isso não podem ser responsabilizadas, ou sentimento de que cada vez mais as decisões estão a ser desviadas do espectro nacional para a esfera de supranacional.

Estado com Justiça e justo: combater a corrupção, apostar na transparência e no mérito
Não é um tema novo, mas a importância não tem ainda encontrado o eco e mobilização necessária como uma das grandes agendas de transformação da sociedade. Portugal tem vindo progressivamente a perder lugares nos principais indicadores de transparência, tendo atingido a pontuação mais baixa de sempre no Índice de perceção da corrupção em 2020, produzido pelo observatório Transparency International, ocupando o 33.º lugar da tabela, com 61 pontos de índice (numa escala entre 0 e 100, onde valores mais próximos de 100 indicam maior nível de transparência), e abaixo da média dos países da Europa Ocidental, assim como dos parceiros da União Europeia, fixados em 66 pontos de índice.

Portugal caiu três lugares no ranking desde 2019, e ocupa o 33.º posto neste reputado índice – que é mais o antigo e abrangente indicador de medição da corrupção no mundo, analisando os níveis de corrupção no setor público de 180 países e territórios. Em 1995, Portugal era o 22º país mais transparente no ranking produzido pelo observatório, e em 2012 (quando foi implementada uma reformulação do cálculo do índice para o formato atual) ocupava exatamente o mesmo ranking que atualmente, embora com maior pontuação (63 pontos).

A inércia deve, por isso, dar lugar à iniciativa para construir uma sociedade mais transparente, onde o mérito seja dominante. Os temas ligados à transparência são hoje incontornáveis, e já tomaram conta das preocupações do povo português, de acordo com várias sondagens públicas sobre as principais prioridades a enfrentar nos próximos anos. Já em 2019, uma sondagem produzida pelo “Expresso” e pela SIC dava conta que, logo a seguir à saúde, a corrupção era o assunto que mais relevância tinha para Portugal, ultrapassando questões como o emprego ou a economia.

Bottoms’ up: cumprir Abril é ultrapassar a inércia reformista, pela exigência cívica e transparência política
Cumprir abril é por isso, nos dias de hoje, combater o imobilismo das últimas décadas. Desde logo por reconstruir um modelo de sociedade e de economia que providencie criação de valor, porque é isso que permite que exista tudo o resto – desde emprego a sistema social, etc. Cumprir abril é avançar na revolução do século XXI, capitalizando nos objetivos de descarbonização ou na digitalização, mas para que funcione para criar empregos novos e sustentáveis.

Apenas uma economia dinâmica e menos dependente das ajudas europeias permitirá repor a esperança, para as famílias e futuras gerações, de uma melhor qualidade de vida e desta forma cicatrizar as feridas que têm sido abertas nas últimas décadas pelas quebras de expectativas. E, por fim, é preciso aumentar a exigência associada às boas práticas – aumentar a transparência das organizações e combater a corrupção e a burocracia são causas que devem mobilizar Portugal e os portugueses, pois são um elemento estabilizador da confiança nas instituições e dissuasor de polarizações políticas como as que temos assistido pelo mundo.

Unir os portugueses em torno de maior responsabilidade, iniciativa e transparência é o melhor caminho para defender a democracia, e a melhor forma de homenagear o espírito de abril.