No cinema de ficção científica, há um antes e um depois de “Regresso ao Futuro”. Foi Robert Zemeckis e o DeLorean voador que popularizaram o conceito de viagem no tempo. Sim, eu sei, nessa altura já “A Máquina do Tempo” de H. G. Wells tinha sido adaptado ao cinema. Mas convenhamos: os Eloi e os Morlocks estão a anos-luz da popularidade atingida pelos icónicos Marty McFly e Emmett Brown, brilhantemente interpretados por Michael J. Fox e Christopher Lloyd.

É na saga do “Regresso ao Futuro” que me sinto quando leio notícias recentes sobre a intenção da Comissão Europeia de alterar um dos pilares fundamentais em que assenta a Internet. Mas não no primeiro filme. Sinto-me como se estivesse nas sequelas – que, como toda a gente sabe, são sempre piores do que os originais –, onde há viagens a um passado distante.

A ideia da Comissão é fazer com que as gigantes tecnológicas, como a Google, o Facebook e a Netflix, que representam uma proporção significativa do tráfego online e que consomem grandes quantidades de banda larga, paguem aos operadores de telecomunicações, como a Vodafone, a Telefónica ou a Deutsche Telekom. O silogismo é simples: as operadoras desenvolvem e mantêm a rede; as tecnológicas sobrecarregam essa rede; logo, estas devem pagar àquelas pelo uso que fazem da rede. Não parece descabido, pois não?

Pense-se agora noutro exemplo: os fornecedores de energia elétrica desenvolvem e mantêm a rede; os fabricantes de eletrodomésticos sobrecarregam a rede; logo, estes devem pagar àqueles pelo uso que fazem da rede. Porque é que isto soa – e é – descabido?

Desde logo, e tal como no primeiro caso, porque os consumidores já pagam (e bem) pelo consumo. Dito de outra maneira, porque aquilo que as operadoras querem é ser pagas duplamente pelo mesmo serviço. E por uma outra razão fundamental. É que a procura pelos serviços das operadoras de telecomunicações e dos seus pacotes de dados deve-se, em larga medida, ao desejo que os consumidores têm de aceder à Netflix, ao YouTube, ao Instagram ou ao WhatsApp. Na sabedoria popular há duas expressões para isto: “morder a mão que nos alimenta” e “cuspir no prato de onde se comeu”.

Em defesa desta medida, as operadoras acenam com uma possível redução dos custos para os consumidores. Se os fornecedores de conteúdos passarem a pagar, as mensalidades de acesso à Internet suportadas pelos consumidores podem baixar. O problema é que se baixam de um lado, muito provavelmente subirão do outro. Se os custos de operação de plataformas de streaming como a Netflix e o Spotify aumentarem, quem é que acham que vai acabar a pagar a fatura, através do aumento das mensalidades de acesso a esses serviços?

E porque é que tudo isto parece uma viagem até um tempo que já passou? Primeiro, porque propostas desta natureza – conhecidas pela expressão inglesa “sending party pays” – aproximariam a Internet de sistemas de comunicação em que é geralmente o emissor que paga pelo privilégio de estabelecer a ligação com o recetor, como os correios e o telefone. Sistemas de comunicação que foram ultrapassados pela Internet, mas a cuja lógica de funcionamento a Comissão Europeia pretende regressar.

Segundo, porque estas propostas já têm barbas. Há cerca de uma década, as operadoras de telecomunicações fizeram lobbying no mesmo sentido e as propostas foram liminarmente rejeitadas pela Comissão. Perante as novas investidas das operadoras, a Comissão parece agora querer entrar no DeLorean e emendar essa decisão. Mas o futuro da Internet, ao contrário do futuro de Marty McFly e Emmett Brown, não precisa de ser corrigido.