A utopia começou, em 1951, com um sonho. Tudo começa normalmente assim, com um sonho. Em 1957, Schuman, Monnet, Spaak, Adenauer e outros, ousaram continuar a sonhar e nasceu a Comunidade Económica Europeia. A Europa precisava dum sonho, já que por terra estavam milhões de mortos que a II Guerra Mundial nos deixou. Na Europa de 1957, a China não “existia” em termos económicos e o aliado norte-americano tinha acabado de dar, poucos anos antes, um contributo inestimável que prosseguiu com o plano Marshall para a reconstrução duma Europa destruída.

A Europa de 2019 confronta-se com o peso económico e tecnológico crescente da China e dos Estados Unidos. Actualmente, as maiores empresas tecnológicas são norte-americanas, chinesas ou sul-coreanas. Nunca houve tanta concorrência porque o mundo é hoje apenas um e um só mercado global. E um só palco, também. A Europa actualmente debate-se com enormes desafios e riscos: os partidos de extrema-direita passaram, de grupos pouco significativos e com expressão eleitoral residual, a integrar os parlamentos e até governos.

Há uma crescente onda de racismo e xenofobia na Europa. Na Hungria, o Fidesz de Orbán obteve 45% nas Legislativas de 2018 e foi recentemente suspenso pelo PPE (Partido Popular Europeu) no Parlamento Europeu. A questão é complexa e o PPE optou por não expulsar o Fidesz. O verdadeiro partido de extrema-direita, na Hungria, é o Jobbik, que obteve 18%(!) dos votos. Na insuspeita Finlândia, o partido dos Verdadeiros Finlandeses está no Parlamento tal como a Aurora Dourada, na Grécia,  tem assento parlamentar. E há mais exemplos.

Por toda a Europa, o falhanço dos partidos tradicionais, do arco governamental ou limítrofes a este, e os escândalos de corrupção, nepotismo, endogamia e favorecimento de interesses, levam os cidadãos a “castigar” os partidos tradicionais em que habitualmente votavam. Esta atitude abriu uma “caixa de pandora” cujo efeito devastador ainda não temos noção.

A discussão política deslocou-se da imprensa tradicional para as redes sociais, sem filtros e com fake news. Cada vez se consome menos imprensa tradicional. A formação de opinião deslocou-se para a Internet. Convém relembrar que as fake news não são um tema para subestimar. Repare-se no “bombardeamento” de mensagens nas recentes eleições no Brasil ou nas norte-americanas.

As redes sociais, cada vez mais consumidas em overdose, e as fake news fazem um verdadeiro “arrastão” à democracia. Nunca foi tão fácil “intoxicar” a opinião dos eleitores. Hoje o combate político na Europa ainda é, essencialmente, entre partidos democráticos nos respectivos parlamentos. Talvez um dia, infelizmente, assistamos ao combate político entre partidos democráticos e não democráticos…

Há, cada vez mais, países cujo alinhamento político não se enquadra no espírito europeu, da tolerância, da democracia, dos direitos humanos, da liberdade, do estado de direito, da inviolabilidade da dignidade humana, mas a verdade é que esses governos foram eleitos. Poderá a democracia “matar” a democracia? A Europa são 500 milhões de cidadãos numa babel de 24 línguas oficiais. A Europa é também uma utopia que todos os dias se materializa ao unir 28 países com regras comuns. A Europa pós-Brexit determinará um recuo assinalável no projecto europeu, cujas consequências políticas, económicas e financeiras são, neste momento, imprevisíveis.

Aproximam-se as eleições europeias num quadro de grande dificuldade para a Europa, que se debate com o Brexit. Existe um enorme problema de comunicação, que não é de agora. Muitos cidadãos não compreendem o papel da Europa nas suas vidas. Cada vez mais a legislação portuguesa incorpora a comunitária e a adopção de directivas europeias é cada vez mais significativa. Provavelmente, nas próximas eleições europeias, apenas 30% dos portugueses irão exercer o seu direito de voto, o que muito contrasta com o impacto de, actualmente, 50% a 60% das leis serem derivadas da legislação comunitária.

Tal como na peça de Beckett, aguardemos por Godot. Por enquanto, só podemos (re)imaginar a Europa pós-Brexit através duma refundação da União Europeia, que a aproxime dos cidadãos, que acabe com o dumping fiscal entre países, que promova o salário mínimo europeu, que aprofunde a cooperação e uma nova política de migração, que nos aproxime da Europa de 1957 que era solidária, disruptiva e utópica. Muitos criticarão a ingenuidade quase utópica da ideia. Mas não foi exactamente assim que tudo começou?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.