Muito se falou do relatório Draghi, apresentado em Setembro, elevando-o quase a um plano de salvação de uma Europa em clara decadência como aponta transversalmente esse relatório. Trata-se efectivamente de um bom diagnóstico da situação económica da Europa, aliás, do seu abrandamento (senão declínio) ao longo dos último 20 anos, devido à falta de competitividade face ao Estados Unidos e China. E, agora que o resultado das eleições presidenciais americanas é conhecido, vê a sua importância renovada.

É por isso relevante, passados dois meses da sua publicação, perceber os pontos fulcrais que Mario Draghi identificou e avaliar o impacto que as medidas propostas podem ter no futuro da União Europeia (UE), em especial no que concerne à energia. Considerada uma peça essencial na economia, Draghi aponta três domínios de acção para relançar o crescimento sustentável: a Inovação, a Descarbonização e a Segurança.

A respeito da Inovação, o relatório sugere uma duplicação dos investimentos em pesquisa” e a criação de infra-estruturas de larga escala para enfrentar essa lacuna na inovação. A aposta em tecnologias emergentes como a inteligência artificial, por exemplo, é outra das medidas sugeridas. Quanto à Segurança, é apontada a necessidade de reforçar a segurança do abastecimento e reduzir as dependências a que a Europa está particularmente exposta (fragilidade que o conflito entre a Rússia e a Ucrânia demonstrou).

No entanto, o terceiro domínio, que versa sobre a Descarbonização, acaba por ser um dos principais focos, apontado como uma oportunidade crucial para equilibrar a sustentabilidade e competitividade industrial na Europa. Diante dos “altos custos de energia na União Europeia”, que chegam a ser duas ou cinco vezes superiores aos dos EUA, e no caso do gás, quatro a cinco vezes superiores, essa disparidade gera um impacto directo na competitividade das empresas europeias. Draghi refere assim que a Europa necessita de delinear um “plano conjunto de descarbonização e competitividade”, que permita trazer de novo para cima da mesa a descarbonização da economia como uma das soluções, por via de recurso a energias limpas.

O relatório identifica várias causas ou bottlenecks que a UE necessita de ultrapassar. Draghi sugere primeiramente que a Europa tem de implementar mecanismos de negociação e contratualização em bloco, particularmente nos mercados de gás e gás natural liquefeito, de maneira a reduzir a exposição à volatilidade dos mercados spot. Em segundo lugar, a UE deve apostar em instrumentos de contratualização de médio-longo prazo, como os Power Purchase Agreements, que têm o potencial de proteger as empresas e as indústrias de preços mais elevados. Terceiro, o relatório considera como imperativo resolver os bottlenecks que existem nas redes de gás e electricidade, e que impedem uma verdadeira interligação e desenvolvimento de um mercado único europeu. Por fim, outra das prioridades deve passar pela simplificação dos processos de licenciamento longos e incertos que dificultam o investimento em fontes de energia limpa.

Nada disto é especialmente novo. Após a pandemia e em especial no contexto da guerra da Ucrânia todas (ou quase todas) estas questões foram identificadas e amplamente debatidas. O pacote REpowerEU de 18 de Maio de 2022 também as identificou em grande medida. A verdade é que pouco mudou e passados dois anos a Comissão Europeia volta a lançar novas orientações e recomendações para melhorar e optimizar os procedimentos de licenciamento de centros electroprodutores (um bottleneck há muito identificado), bem como os leilões para as energias renováveis.

A nova estratégia europeia “promete ainda eliminar as barreiras que tradicionalmente se têm oposto ao avanço da expansão das centrais solares e eólicas, uma vez que a nova lei consagrará o princípio de que os projectos renováveis passem a possuir a caracterização jurídica de projectos de interesse público superior e prevalecente”. Outra recomendação é a fixação de metas europeias de produção interna de 10 milhões de toneladas de hidrogénio renovável e de importação de 10 milhões de toneladas até 2030, com o objectivo de substituir o gás natural, o carvão e o petróleo em sectores industriais e dos transportes, tendencialmente mais difíceis de descarbonizar.

O que é verdadeiramente novo ou ressalta do relatório Draghi é a questão da necessidade de repensar a governação europeia dando prioridade à competitividade e a eficiência nos investimentos. A Europa enfrenta hoje um claro problema de competitividade face a outros mercados, que podem prejudicar e pôr em perigo o “Projecto Europeu”.

Se nos parece evidente que as divergências políticas que dificultam uma resposta unificada e eficaz por parte dos membros da UE não vão desparecer, a verdade é que parece ter chegado a altura de não definir metas cegas e inalcançáveis, mas assumir que a estratégia de descarbonização da Europa não segue uma abordagem única. Os Estados-membros seguem abordagens diferentes adaptadas aos seus sistemas de energia específicos. Definir metas em todas as vertentes para todos não faz qualquer sentido. Importante é o aumento dos investimentos e a criação de fundos robustos, como existem nos Estados Unidos, para financiar sectores como a inovação, ou a aposta em diferentes fontes de energia para além das renováveis, como é o caso francês, no investimento crescente em energia nuclear. Fundamental é também criar as condições para que o Mercado Interno de Energia seja um verdadeiro mercado, pujante, que permita não só resolver o tema da soberania energética que a Europa manifestamente enfrenta, mas que também facilite a exportação para fora do mercado europeu e crie riqueza.

A União Europeia não é uma entidade homogénea, sendo composta por diferentes economias, mix energéticos, indústrias e desafios e isso é que confere ao bloco europeu uma vantagem e singularidade única em relação aos seus concorrentes. No entanto, se essa diversidade não for devidamente assegurada pelas instituições europeias na legislação e nos novos projectos europeus, aliado ao necessário comprometimento com uma estratégia firme e delineada, esse facto pode se virar contra as mesmas. O efeito geral e abstracto das metas e dos objectivos climáticos europeus pode ser fatal para o caminho de descarbonização.

Tal como em Portugal, também na Europa são urgentes reformas institucionais e uma liderança forte que nos guie através dos desafios económicos e tecnológicos. Se tal não for feito, corremos o risco de ficar ainda mais para trás em relação aos nossos concorrentes globais, como os Estados Unidos e a China.

O relatório Draghi alertou. Cabe agora à UE perceber verdadeiramente que, por vezes, mais do que os próprios objectivos, o sucesso encontra-se na implementação dos meios e dos instrumentos para alcançar os mes-mos (que a Europa tem sido useira e vezeira em adiar).

Os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia.