As polémicas que envolvem o primeiro-ministro e o Presidente da República, geradoras de um manto de descrédito sobre os órgãos de cúpula do Estado, têm características comuns: a do tratamento de privilégio na condução dos assuntos públicos e a subserviência em relação aos detentores do poder, faceta dessa mesma política de privilégio. Ambas são reminiscências de um Portugal pré-moderno, profundamente enraizadas nos nossos costumes, que subsistem até hoje.
O Estado moderno caracteriza-se pelo funcionamento impessoal, assente nos automatismos da administração, que opera com base em procedimentos legislados, independentemente dos envolvidos. Numa sociedade composta não por súbditos mas por cidadãos, o Estado deve, pois, agir de modo igual perante todos. Não é, todavia, assim que o país funciona, como as referidas situações demonstram.
O caso do centro de dados em Sines, que implicou o chefe do Governo, é revelador quer do tratamento privilegiado de um cidadão, quer do servilismo, patente da atitude de alguns ministros. Diogo Lacerda Machado, beneficiando de um estatuto equívoco de amigo do primeiro-ministro, uma espécie de favorito de um monarca de Antigo Regime, circularia, ao que consta, com à-vontade pelos corredores dos ministérios, com o objectivo de obter facilidades para uma empresa para a qual prestava serviços, fazendo uso dessa sua condição propiciadora.
Os ministros, por seu turno, por forma a agradar a António Costa, terão prontamente acedido às facilidades requisitadas, visando agradar ao seu chefe, como fica patente em conversações entretanto divulgadas – sabe-se lá como, mas isso é outra história – pela comunicação social.
No que concerne à controvérsia que envolve o Presidente da República, embora, ao que se sabe, Marcelo Rebelo de Sousa não esteja directamente envolvido, estas duas características deste modo de agir estão também presentes; o filho do chefe de Estado terá procurado, através de contactos pessoais, contornar as regras vigentes, por forma a garantir um tratamento preferencial a duas gémeas luso-brasileiras, cuja mãe seria das suas relações, fazendo uso do seu apelido ilustre, na certeza de que os subordinados afanosamente procurariam agradar ao supremo magistrado da nação, ainda que por interposta pessoa.
Ambas as situações revelam, pois, tais comportamentos atávicos. A procura do tratamento de favor, para obtenção um determinado benefício ou para contornar a burocracia – por vezes sufocante, diga-se, logo propiciadora deste género de expedientes –, remonta a um passado longínquo.
Outrora, peticionários de toda a sorte de favores acumulavam-se nas antecâmaras dos ministros ou acudiam às audiências públicas dos monarcas na expectativa de se verem acudidos pela liberalidade régia. Por seu turno, a subserviência dos inferiores em relação aos superiores era também comum, visando, de igual modo, a conquista de benefícios por outras vias que não as do mérito e do escrutínio objectivo e imparcial de competências.
Uma conduta atenta, veneradora e obrigada era condição de ascensão profissional e social numa sociedade assente nas relações pessoais de poder. Porém, como referido, o Estado moderno e democrático não pode furtar-se ao princípio da igualdade de todos os cidadãos, obrigando-o a agir de forma igual e uniformizada em relação a todos, sem excepções. A concessão de graças e mercês pelo Estado tem de ficar, definitivamente, no passado, ao qual pertence.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.