Uma das piores consequências do nascimento de Donald Trump para a política e da sua subsequente eleição como primeiro Presidente laranja dos Estados Unidos tem sido a forma como os seus apologistas – pelo menos nos EUA e em Portugal – acabam por recorrer aos mais absurdos argumentos para defender o indefensável, em alguns casos apenas e só porque se sentem compelidos a defender tudo o que “a esquerda” critica. Noutros casos é mesmo porque acreditam genuinamente em coisas indefensáveis que por serem indefensáveis só podem ser defendidas com argumentos absurdos.
Um exemplo perfeito dessa triste tendência é a ideia, muito defendida por Trump e prontamente papagueada com maior ou menor sofisticação por quem critica os seus críticos (por norma, o típico defensor de Trump gosta de dizer que não apoia Trump, restando saber se tal se deve a um mínimo de vergonha ou a um excesso de hipocrisia) de que a recente remoção de estátuas de figuras célebres das forças derrotadas na Guerra Civil do século XIX constitui um “apagar da História” típico de uma sociedade totalitária.
Há coisas que de tão óbvias que são deveriam dispensar explicações, mas uma vez que anda por aí uma grave epidemia de cegueira política, é preciso fazer o esforço de tratar quem opta por ignorar a evidência como um néscio: remover uma estátua não é “apagar a História”, pela simples razão que uma estátua não é “a História”. “A História” está nos livros que se escrevem, nos registos e documentos oficiais, nos museus, nas coisas que as pessoas contam umas às outras. Uma estátua, embora fazendo parte dessa “memória” que se preserva do que aconteceu no passado, é essencialmente uma homenagem à figura retratada. Ter uma estátua de um líder da “Confederação” tem um significado claro: proclamar que o sistema político e social da “Confederação” merece ser homenageado.
Ao remover-se uma estátua de Robert E. Lee, ninguém está a “apagar” Robert E. Lee da História nem a fingir que ele nunca existiu. Pelo contrário: apenas não se está a esquecer que se tratou de um líder de tropas secessionistas – ou seja, alguém que lutou pela destruição dos Estados Unidos – em prol de um sistema que condenava uma parte da população à escravatura por causa da cor da sua pele; apenas não se está a esquecer ou a apagar o facto de que essas estátuas foram erigidas para deixar claro à parte da população entretanto liberta da escravatura que “os yankees” podiam ter acabado com essa muito “peculiar instituição” mas que eles continuavam a ser seres menores para o sistema político ao qual estavam sujeitos; ninguém está a apagar ninguém da História, apenas se deixa de prestar homenagem a alguém que simboliza valores e um sistema que uma sociedade democrática e apreciadora da liberdade individual como os EUA não deve homenagear.
Por essa razão se deitaram abaixo os símbolos nazis na Alemanha derrotada na II Guerra; por essa razão se removeram estátuas de Lenine ou Estaline em países como a Ucrânia; por essa razão a “ponte sobre o Tejo” deixou de se chamar “Salazar”. Ninguém apagou os horrores do nazismo, da fome que Estaline impôs na Ucrânia, ou o carácter ditatorial do Estado Novo da História; apenas se garantiu que nenhum judeu que viva ou visite a Alemanha seja confrontado com uma glorificação dos horrores a que os seus foram sujeitos, que nenhum ucraniano seja obrigado a olhar diariamente para uma homenagem ao seu opressor, ou que uma obra de propaganda ao senhor de um regime ditatorial não continuasse a ser uma glorificação desse mesmo senhor (por essa mesma razão, é obsceno que num país democrático como Portugal haja uma rua com o nome de uma figura como Hugo Chávez, por exemplo).
Dito isto, o facto de essas estátuas terem sido erigidas, de esses símbolos de homenagem a algo que não merece ser homenageado terem sido glorificados, é algo que não deve ser esquecido. As estátuas, embora possam ser removidas da “praça pública” para sinalizar que “a sociedade” não considera que o que elas simbolizam – a veneração de um regime assente na discriminação racial e na exploração desumana dos discriminados – seja merecedor de homenagem, não devem pura e simplesmente ser destruídas. Devem, por exemplo, ser colocadas num museu, onde se mostre o que significam, por que razão foram construídas e por que razão foram removidas. Essa é a única forma de fazer com que “a História” do Sul dos Estados Unidos não seja vista de uma forma parcial, que glorifica os pretensos méritos dos seus heróis mas “suaviza” o sofrimento que o mundo pelo qual lutaram impôs a quem não tinha a cor de pele “certa”. Manter as estátuas onde estavam, mantendo assim a homenagem ao sistema que representam, é que seria “apagar” da História o carácter abominável daquilo que simbolizam.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.