Num texto publicado n’O Jornal Económico, Ricardo Moreira faz uma crítica informada sobre alguns dos riscos associados ao conceito de rendimento básico incondicional (RBI), apresentando para tal quatro objeções de fundo. Este texto junta-se aos vários que têm sido publicados na comunicação social portuguesa e contribui para um debate cada vez mais necessário: qual é o futuro que desejamos para as nossas sociedades e quais os papéis do emprego e do rendimento. Sendo críticas válidas que vêm no seguimento da intervenção que Ricardo Moreira fez no Congresso Mundial sobre o RBI, importa contrapor alguns dos pontos apresentados.

Comecemos pela introdução: efetivamente, um rendimento básico pretende que todas e todos tenham direito a um rendimento (normalmente ao nível da subsistência), como garantia de que nenhum indivíduo se encontre completamente desprotegido. Contrariamente a outros programas intrusivos, burocráticos e condicionais que afastam potenciais cidadãos necessitados, o RBI, pelo menos nas suas formas mais puras, seria atribuído de forma universal e incondicional aos cidadãos e residentes de longo prazo.

Se é verdade que, como afirma Moreira, os defensores do RBI o fazem tendo em vista a redução (ou eliminação) da pobreza e das desigualdades, ele deve ser entendido de um modo mais amplo, como uma questão de justiça e de justa recompensação de todos por aquilo que é de todos. Deve portanto ser entendido não como uma panaceia mas como um possível passo em frente que nos permita, enquanto sociedade, não só enfrentar a globalização e desenvolvimento tecnológico, mas também moldar ambos os processos de modo a que ninguém fique para trás.

Olhemos agora em detalhe para as quatro objeções levantadas.

1. O pleno emprego e o direito ao trabalho

Não deixa de ser curioso que Moreira fale de pleno “emprego” enquanto defende o direito ao “trabalho”. Se o primeiro exige uma remuneração, o segundo está livre dessa obrigação. Certamente ninguém se atreverá a dizer que um pai que fica em casa a tomar conta dos filhos não está a “trabalhar”, pese embora não esteja “empregado”. Esta distinção é essencial e é na necessária quebra do vínculo entre emprego e rendimento que o conceito de RBI tem maior potencial. É que se o direito ao emprego é importante, também o é o direito de poder rejeitar um emprego precário, desvalorizador e humilhante.

A sociedade produtivista e consumista em que vivemos há várias décadas colocou o emprego num pedestal alto, relegando outras formas de trabalho (não remunerado) para segundo plano. As consequências desta sacralização do emprego são várias, desde logo a desvalorização daqueles que, por vontade própria ou não, estão fora do mercado laboral.

Um sistema de segurança social como o português, que obriga os desempregados a procurar ativamente um emprego, contribui certamente para esse destaque do emprego, fornecendo assim a narrativa perfeita para um sistema assente na chantagem: ou o indivíduo trabalha ou então está fora do sistema. Mais do que o pleno emprego, devemos almejar o pleno trabalho, reconhecendo e valorizando as atividades não remuneradas mas que contribuem para o nosso bem-estar coletivo. Ou não será mais valioso o trabalho de alguém que dedica o seu tempo à comunidade que o emprego de alguém que produz armas? Esta valorização do trabalho em detrimento do emprego é de extrema importância num momento crítico a nível ecológico como o que vivemos.

Mas Moreira tem razão quando refere o papel que os trabalhadores desempenharam em relação à luta por mais e melhores direitos sociais. O grande problema desta visão é que olhar exclusivamente para o passado dificilmente nos dará soluções para o futuro. A globalização e o desenvolvimento tecnológico vieram trazer novos desafios que exigem novas soluções. E se é verdade que algumas medidas podem ser encontradas dentro do mercado laboral – desde logo através da redução drástica do horário laboral – outras medidas têm que ser consideradas. É que a tecnologia que substitui máquinas por humanos avançará tão rapidamente quanto avançarem os direitos laborais; e chegados a este ponto, os que se situam à esquerda terão que escolher se preferem lutar por empregos que serão cada vez mais escassos e possivelmente mais precários, ou se preferem abraçar o avanço tecnológico, moldando-o de modo a que beneficie todos e não apenas uma elite. Se optarem pelo segundo, então a defesa cega do direito ao emprego fica esvaziada de sentido.

Finalmente, Moreira refere o facto de ficarmos nas mãos de um “Estado benevolente”, dependendo do mesmo para aceder ao RBI. Mas não é o que acontece hoje em dia em relação à gratuitidade e universalidade do SNS e do sistema de educação? E não estaremos mais dependentes do Estado se optarmos por propostas como as apresentadas por Daniel Oliveira no Congresso em Lisboa, onde o Estado asseguraria uma série de empregos considerados como socialmente úteis?

2. RBI e Estado Social

Esta é uma crítica recorrente à esquerda, na sequência da defesa feita por Milton Friedman de uma espécie de RBI. No entanto, se há quem defenda uma visão libertária de direita de um RBI, a grande maioria dos seus defensores europeus defende uma visão progressista. Aliás, olhando para os quase 500 participantes do Congresso Mundial que teve lugar em Lisboa, os dedos das mãos chegarão para contar aqueles que defendem um RBI como substituto do Estado social.

Mas o facto de Ricardo Moreira levantar esta crítica deveria alertar-nos para uma questão: se a esquerda não se interessar pelo RBI, quem o fará? Olhando para as experiências que têm sido postas em marcha ou serão brevemente, da Finlândia ao Canadá, as perspetivas não são animadoras, sendo sobretudo governos liberais que se mostram interessados nas mesmas. O RBI tem, no entanto, todas as condições para ser uma grande luta agregadora da esquerda e dos ecologistas, como foi em tempos a luta pela jornada de 8 horas ou as férias pagas. Se assim for, é essencial a definição de um modelo de RBI emancipador, progressista, antiprodutivista e que seja implementado como parte do Estado social e não como seu substituto. A defesa de um RBI nestes moldes é tema de grande debate no seio do LIVRE, onde não há ainda uma posição oficial sobre o tema.

3. O RBI à portuguesa

A questão do financiamento de um RBI aparece a par da preocupação com o abandono em massa do mercado laboral no topo dos argumentos daqueles que se opõem ao RBI. É um ponto essencial, é certo, mas que na maior parte das vezes serve apenas para fugir ao verdadeiro debate. De referir apenas que as contas muitas vezes apresentadas por opositores do RBI esquecem as poupanças que se conseguiriam com a eliminação de sistemas de segurança social, que se tornariam redundantes, ou ainda com as poupanças feitas ao nível dos trabalhos ligados ao controlo e monitorização dos critérios de condicionalidade dos programas existentes.

Quanto às fontes de financiamento, um RBI representa uma excelente oportunidade para repensar o sistema de impostos, tornando-o mais progressivo e taxando as atividades poluentes (e.g. através de uma taxa sobre as emissões de CO2) e ainda os comuns, desde o uso do solo e dos recursos naturais, até ao uso da banda de emissões de radiocomunicação. Tratar-se-ia no fundo de cobrar pelo uso dos recursos que pertencem a todos, remunerando todos da mesma forma.

4. RBI, mercado e liberdade

Num quadro capitalista, um rendimento extra não irá promover mais consumo? E será esse consumo positivo num planeta em claro estado de insustentabilidade em grande medida pelo consumo excessivo nos países ricos? São duas perguntas pertinentes e que terão respostas diferentes consoante o modelo de RBI defendido. Um RBI abaixo do limiar de subsistência que não permita a saída de um grande número de pessoas do mercado laboral poderia ser um incentivo ao consumo; por outro lado, um RBI ao nível da subsistência poderia ser um elemento poderoso na definição de políticas de sustentabilidade.

André Gorz distinguia as atividades humanas em três esferas: a do Estado, a do mercado e a autónoma, que englobava tudo o que não estava nas duas primeiras esferas. As atividades familiares, de comunidade e voluntárias fazem portanto parte desta esfera autónoma que Gorz defendia seria valorizada com a instituição de um RBI. Não de qualquer valor, mas sim ao nível da subsistência. Deste modo, o sistema (neo)liberal seria confrontado com os seus próprios limites e à medida que mais pessoas fossem saindo do mercado laboral e ganhando tempo para se dedicarem a atividades na esfera autónoma, mais seriam os bens desmercadorizados e mais se desenvolveria o espírito comunitário.

Contrariamente às críticas que muitas vezes lhe são feitas, o RBI poderia ser o melhor antídoto para uma sociedade cada vez mais atomizada e individualista. Tal não se conseguirá apenas dando um rendimento às pessoas, é certo; mas se estas se virem livres para decidir por si próprias e se forem criados os espaços para que lhes seja dada voz, então é de esperar que os indivíduos se dediquem às causas do bem-comum. E bem precisamos de cidadãos ao serviço da comunidade e não de um qualquer patrão.