Ou escandaloso. Ou qualquer outro adjectivo similar serve para classificar e qualificar o Relatório da 11ª Missão de Avaliação do Credor ao Pós-Programa de Ajustamento de Portugal tornado público a 8 de Abril passado. Isto é, no intervalo de tempo entre a reunião do Eurogrupo que não concluiu e a reunião do mesmo grupo, a 9 de Abril, que obteve os «brilhantes» resultados que se conhecem.

No Sumário Executivo do Relatório escreve-se, numa tradução à letra: «Este relatório apresenta as conclusões da décima-primeira missão de vigilância pós-programa (PPS) do staff da Comissão (Europeia), em ligação com o staff do BCE, que teve lugar em Lisboa durante 11-12 de Fevereiro.» Com a data de fecho de 6 de Março. Onde também se escreve: «Independentemente das medidas Covid 19, existiam pressões do lado da despesa orçamental em particular nas remunerações dos trabalhadores públicos, bem como na despesa com pensões e saúde (…)»

Para não ficarem dúvidas, no texto do Relatório sublinham-se as preocupações com o descongelamento e revisão das carreiras e um aumento geral dos salários da Função Pública, e com um «aumento extraordinário das pensões baixas – acima da referência da normal indexação das pensões à inflação e ao crescimento do PIB».

Em plena pandemia, com o estado de emergência declarado, e perante o silêncio da generalidade (1) dos media (mais preocupados com os exercícios contorcionistas de Centeno e o «repugnante» do ministro holandês), o que vêm dizer os serviços de vigilância da Comissão Europeia (CE) ao pós-Pacto de Agressão da Troika?

Sem qualquer pudor e total desfaçatez, e já depois do levantamento(?) das imposições do Tratado Orçamental/Pacto de Estabilidade, a CE alerta: cuidado com as pressões dos gastos com a saúde, com os vencimentos dos funcionários públicos (agora se percebe melhor aqueles 1% de aumento da função pública de Centeno e C.ia durante o debate do OE2020) e com as pensões/reformas.

Com o vírus a pôr nu as fragilidades de um Serviço Nacional de Saúde (quão insubstituível e inquestionável se mostrou agora!) corroído por décadas de «contenção orçamental» degradando a sua capacidade operacional, eliminando camas de internamento (só entre 2011 e 2015 foram 2.000), serviços e instalações, não renovando equipamentos, reduzindo o número dos seus profissionais, a Comissão Europeia, vem dizer que gastamos de mais no SNS. Que é preciso reduzir essa despesa para não fazer crescer a sombra da Dívida Pública. Extraordinário!

Com o vírus a evidenciar a falta de profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico, auxiliares – resultado da sua “migração” para os grupos de saúde privados e para o estrangeiro, por causa dos baixos vencimentos e más condições de trabalho, a CE vem dizer que os salários dos funcionários públicos, dos mais baixos da Europa, pressionam a Dívida Pública.

Com o vírus a mostrar quão baixas são as pensões e reformas de milhares de trabalhadores portugueses, obrigando-os a albergar-se em lares e residências de idosos sem qualidade, a CE vem preocupada lembrar que essas pensões e reformas de miséria afectam os sublimes rácios da dívida e do défice!

O Relatório mostra uma quarta preocupação: a redução da «lucratividade» dos bancos! Pobres bancos, sacrificados no altar da estabilidade financeira. Por isso mesmo, a Comissão abençoa «uma nova activação do mecanismo de capital contingente» ou seja, a conhecida transferência que o Governo PS com a ajuda de PSD e CDS, acolheu no OE2020, de 650 milhões de euros do Fundo de Resolução, isto é de dinheiro dos contribuintes, para o Novo Banco. Aqui, não vê a Comissão Europeia pressões nem riscos para o défice e a dívida!

Mas não há qualquer contradição entre o dito Relatório e as decisões do Eurogrupo e outros anúncios dos órgãos da UE. É a harmonia universal. Apenas uns anunciam agora como somar dívida à dívida e os outros antecipam o que aí vem para Portugal pagar a dívida…

É tudo simples e muito claro. Nem se percebem, aliás, as lamúrias pela solidariedade europeia. O apelo «Por um despertar colectivo» subscrito por jornais europeus entre os quais o “Público”. As visões trágicas de Soromenho-Marques, «Esse abismo que nos olha», pedindo «federalismo como (…) uma vacina». As dúvidas de Teresa de Sousa, «Palmas? Não é caso para isso». É preciso ter fé como Assis: «a solução encontrada pelo Eurogrupo contribuirá em muito para a superação da grave crise que se antecipa». Ou como os que anunciam um novo Plano Marshall, ou Plano Draghi.

Ou não leram a notável (e hipócrita) resposta dos ministros alemães dos Negócios Estrangeiros e das Finanças – «Uma resposta solidária à crise do coronavírus» – a quem o Público ofereceu uma página a 06ABR20?! Que solidariedade… E até, que acto de contrição (deve ser do tempo pascal) ao reconhecer que «uma política de austeridade como a que se seguiu à crise financeira (…) levou a que os Estados membros fossem tratados de forma desigual.» Hossana! Certamente por falta de espaço, esqueceram-se de informar qual o aumento da contribuição do orçamento alemão para o Orçamento Comunitário… para responder à crise.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

(1) Há uma notícia de L.Reis Ribeiro, no Dinheiro Vivo de 09ABR20.