Enquanto no Reino Unido se discute a saída da União Europeia, em Portugal oscilamos entre o afiar de facas no PSD e o mundo de promessas de investimento público do PS. Se se diz que cada país tem os políticos que se lhe adequam, a verdade é que, neste rectângulo, somamos um conjunto de especificidades que quase mereciam um estudo e que nos fazem merecer-nos reciprocamente. Como típica portuguesa, acabo sempre a pensar que podia ser pior e viver governada por Bolsonaro ou por Trump, na velha lógica do mediano ser inimigo do óptimo.
Tendo presente a ostensiva violação do que é mais basilar na relação advogado-cliente, operada pela devassa de comunicações de advogados a propósito do Benfica, esperava-se que o discurso de reabertura do ano judicial (um dia, ainda hei-de perceber a que título a mesma ocorre nesta data mas isso é outra conversa…) do Bastonário da Ordem dos Advogados fizesse, pelo menos, uma referência ao que é o cerne da profissão. Puro engano.
Num discurso similar ao do ano anterior (na prática, começo a achar que os intervenientes podiam repetir o que dizem no ano anterior que ninguém, incluindo eles próprios, notaria), o Senhor Bastonário nada referiu sobre a divulgação das comunicações entre mandatários e clientes, antes optando por aludir à velha questão das custas e ao surpreendente pedido sobre a legitimidade da Ordem para suscitar a fiscalização da constitucionalidade das leis.
Se quanto à primeira, tem toda a razão, porque, refira-se, as custas processuais são indignas de um Estado de Direito, no que se reporta à segunda o espanto assenta no facto de, tanto quanto se sabe, a Ordem nem sequer aproveitar o direito de audição que legalmente lhe é concedido quanto mais andar a pretender ter para si o que é, por essência, trabalho daqueles que devia agregar.
Em vez de repetir o óbvio e tentar inovar onde não é urgente, a questão da violação do sigilo é grave o suficiente para justificar uma intervenção maior do que o mero envio de uma comunicação a dizer que estamos seguros.
Como se não bastasse, perante o seu Bastonário, os advogados tiveram ainda de ouvir, sem qualquer oposição daquele, que o regime da CPAS é, agora, muito mais justo. Também aqui entendamo-nos: há uma classe profissional em Portugal que não tem direito a ficar doente em circunstância alguma (sendo que um parto pouco mais dá do que uns trocos para fraldas) e paga umas centenas de euros por mês sem que alguém perceba para quê e visando que resultado.
Numa altura em que se afirma por todo o lado pretender-se combater a precariedade, haja alguém que olhe para a inexistente previdência dos advogados, em vez de lhes acenarem com descontos ridículos. Não é verdade que o sistema seja justo, como não é verdade que estejamos melhor, apesar das promessas feitas em sede das sucessivas campanhas eleitorais. No final do mandato, tudo se resume a menos do que um punhado de euros, embora tal nos seja servido com um benevolente sorriso. Continue a descansar em paz, que cá nos aguentaremos, de olhos postos no futuro.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.