O tema da ferrovia tem vindo a merecer uma crescente preocupação por parte da sociedade, graças à pungente degradação da qualidade do serviço. A verdade é que em face das restrições orçamentais, tanto a Rede Ferroviária Nacional (RFN) como os serviços de transporte ferroviário de passageiros (disponibilizados pela CP) têm sido alvo de desinvestimento público, o que acaba por se revelar anacrónico tendo em mente as metas para a descarbonização do setor dos transportes.

Estamos, pois, no exato momento em que se deve delinear uma estratégia para a sustentabilidade dos serviços ferroviários. Sejamos claros; não se trata de um plano de expansão da rede ou da renovação da frota, que, embora sejam investimentos relevantes, servem apenas para desviar as atenções do essencial: a reorganização do setor ferroviário.

A liberalização económica, em Portugal, iniciou-se com Cavaco Silva e ganhou um novo momentum com o governo de Passos Coelho e Paulo Portas. A gestão privada tem acelerado a inovação e a eficiência em setores concorrenciais e em monopólios naturais. Surpreende-me, com efeito, que o modelo empresarial da ferrovia seja um pária entre os demais setores estratégicos.

Já em 1981 Nigel Lawson (Secretário da Energia do Partido Conservador inglês) dizia que o negócio do governo não é o governo do negócio. Nessa linha, o manifesto eleitoral dos Tories de 1983 apresentava uma agenda reformista, que acabou por se traduzir na privatização de mais de 40 empresas, incluindo a rede ferroviária e os serviços de transporte ferroviário.

Ao contrário do sucedido no Chile (em que as privatizações tiveram como principal objetivo reverter as nacionalizações de Allende), no Reino Unido a liberalização da economia foi acompanhada por um processo de restruturação empresarial e regulação dos serviços.

No que diz respeito ao setor ferroviário, Thatcher começou por “externalizar” serviços non-core, para posteriormente restruturar a cadeia de valor (vertical e horizontalmente), criando várias empresas. A rede ferroviária e a infraestrutura de transporte foram separadas e mais tarde privatizadas[1]. Passaram a existir 25 empresas com o direito a transportar passageiros, num ambiente concorrencial. A liberalização foi consolidada com a criação de duas entidades reguladoras (uma para a rede ferroviária e outra para os serviços de transporte de passageiros). Esta reforma resultou na melhoria da qualidade do serviço (3%/ano) e da eficiência operacional (2%/ano).

A estratégia para a cadeia de valor ferroviária, em Portugal, poderia ser semelhante, mas corrigindo alguns erros do modelo britânico (demasiado complexo). No entanto, antes de se decidir a futura organização do setor, seria prudente proceder ao estado da arte da gestão da ferrovia na Europa e EUA, em termos da titularidade dos ativos e serviços (pública ou privada) e dos mecanismos de regulação económica.

Nesse âmbito, importa também estimar os custos e benefícios da externalização da concessão da RFN (hoje gerida pela IP) e da CP a entidades privadas, assim como a venda da EMEF. A liberalização deste setor teria de ser acompanhada pelo reforço da autonomia e dos poderes do regulador (AMT), assim como pela criação de condições para a entrada de novos operadores de transporte de passageiros, de forma a estimular a concorrência e a diversificação da oferta.

Por fim, de acordo com a teoria da regulação, a gestão privada está orientada para a maximização do lucro do acionista e para o cumprimento dos requisitos regulatórios, enquanto a gestão pública persegue o interesse nacional. Perante a deterioração do desempenho do setor ferroviário (público), atrevo-me a concluir que a liberalização da ferrovia poderá ser motivada (também) pela falha do Estado enquanto concedente, concessionário e regulador.

 

[1] Com o acidente ferroviário de Hatfield, em 2000, a Railtrack (rede ferroviária) encerrou várias áreas de rede. Nesse contexto, o Labour foi ao encontro das pretensões dos sindicatos e resgatou a concessão da rede, entregando-a à Network Rail (empresa pública). Teria uma rede ferroviária pública evitado o acidente?