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Ricardo Baptista Leite: “Tivemos um óbito num turno de 12 horas, além de outros casos muito complexos”

Deputado social-democrata alerta para falhas na resposta à pandemia de Covid-19, que chegou a enfrentar nas urgências do Hospital de Cascais. Testagem em massa, bem como o isolamento dos infetados e casos suspeitos, serão essenciais para garantir que a segunda vaga não se tornará ainda mais difícil de controlar.
  • Ricardo Baptista Leite
28 Setembro 2020, 07h40

O início da pandemia de Covid-19 levou Ricardo Baptista Leite a oferecer-se como voluntário, pelo que pôde ver a “evolução galopante” da doença. “Tenho a felicidade de poder exercer a arte médica, de ter a vertente académica e de exercer funções políticas, o que me permite ter uma visão mais abrangente e, sobretudo, identificar dificuldades no terreno e estar numa posição em que as possa verbalizar”, diz o deputado social-democrata em entrevista ao programa “Primeira Pessoa” do site do Jornal Económico.

Qual é a memória que retém da primeira vez em que viu um doente de Covid-19?

No início desta pandemia, devido às dificuldades que os colegas estavam a viver, ainda por cima tendo formação de base em doenças infeciosas, senti que era meu dever regressar ao hospital. Ofereci-me como voluntário ao Hospital de Cascais, que é a minha terra, e recordo-me bem desse primeiro dia, pois tivemos um óbito num turno de 12 horas, além de outros casos muito complexos. O óbito marcou-me de forma muito forte porque a Covid-19 é uma doença que evolui muitas vezes de forma galopante. Alguém com saturações de oxigénio relativamente estáveis pode começar a baixar subitamente e a precisar de oxigénio e de cuidados intensivos. No caso desta doente em particular não chegámos a tempo de a colocar em cuidados intensivos. Lembro-me de ter relatado o caso num programa de televisão, naturalmente sem pormenores, e de a filha dessa doente ter chegado ao meu contacto, agradecendo todo o trabalho que a equipa fez. Marcou-me muito porque, não tendo sido um sucesso, demonstrou-me a voracidade deste vírus, sobretudo na população mais idosa, e o lado humano com que os profissionais de saúde lidam diariamente.

É importante haver alguns decisores políticos que tenham experiência da linha da frente do combate à pandemia?

Precisamos, acima de tudo, de pessoas dedicadas à causa pública e que queiram trabalhar para o bem comum. Tenho a felicidade de poder exercer a arte médica, de ter a vertente académica e de exercer funções políticas, o que me permite ter uma visão mais abrangente e, sobretudo, identificar dificuldades no terreno e estar numa posição em que as possa verbalizar. Muitas vezes quem nos governa está distante, até por força das circunstâncias, e ter quem possa alertar para essas dificuldades deve ser encarado como útil e construtivo. Recordo que no início da pandemia também organizei um movimento informal de voluntários chamado “Um Passo à Frente do Coronavírus”, que era um portal onde médicos, outros profissionais de saúde e bombeiros podiam registar-se para dizer que material lhes faltava, nomeadamente equipamento de proteção individual. Distribuíamos a informação ao Ministério da Saúde e a fornecedores de equipamentos, conseguindo aos poucos repor o material em falta e garantir proteção para quem estava a lidar com doentes com Covid-19. Houve muitos outros exemplos de solidariedade e de respostas a partir da sociedade civil que creio serem determinantes quando estamos a lidar com uma crise desta magnitude. Espero que esse espírito solidário, na política e na sociedade em geral, se possa perpetuar agora que estamos a iniciar um período difícil, do ponto de vista económico e social, resultante desta mesma pandemia.

Alertou recentemente que “não há dúvida de que teremos terceiras vagas de Covid-19 se não houver vacina”. Portugal encontra-se preparado sequer para a segunda vaga?

É fundamental perceber que se não tomarmos as medidas necessárias, e isto significa controlar a pandemia através de uma estratégia agressiva de identificação precoce e contenção do vírus, com testagem massiva e isolamento efetivo de todos os casos de infetados e suspeitos, além do controlo de entradas no país, será impossível controlarmos a pandemia. Some-se a isto a responsabilidade individual – uso de máscara, lavagem de mãos, distanciamento físico – e só assim poderemos garantir essa resposta. Se não o fizermos teremos vagas sucessivas enquanto não houver uma cura ou uma vacina. Por isso é que se tem apelado para que se tomem todas as medidas necessárias. A prevenção que passa pela testagem massiva, a utilização de testes rápidos como mais uma ferramenta – não substituem os testes clássicos, mas os testes antigénio podem ser mais uma ferramenta de rastreio rápido para situações de risco, nos lares, prisões e escolas – e um dispositivo público que permita identificar todos os que tenham estado em contacto com infetados. O Plano Outono-Inverno do Governo fala em 24 horas para o fazer, mas nessas 24 horas há que não só identificar as pessoas como garantir o seu confinamento. No hospital éramos nós que tínhamos de ligar às pessoas que estavam à espera do resultado, para dizer que iriam ser contactadas pelas autoridades de saúde e teriam de ficar confinadas. Recordo-me bem de uma senhora, divorciada e com dois filhos, me dizer que não tinha condições para ficar confinada, pois vivia do seu trabalho e tinha de pôr pão na mesa. Temos que ter respostas para isto, pois caso contrário as pessoas vão continuar a circular.

A falta de condições para o isolamento de infetados é a principal falha até agora?

É um desafio para o qual não temos resposta neste momento. E o outro é a testagem em lares. Mesmo no Plano Outono-Inverno só está previsto testar utentes, residentes e funcionários se houver um caso positivo. Isto é um disparate, pois deveríamos testar rotineiramente pelo menos os funcionários, que podem trazer o vírus para dentro do lar. A partir do momento que há um caso positivo de um residente, muitas mais pessoas já estão potencialmente infetadas numa população de altíssimo risco. Sabemos que a mortalidade entre pessoas com mais de 80 anos ronda os 20%. Também temos de ser mais eficientes nas entradas no país. Melhorámos significativamente nos aeroportos e portos marítimos, mas não se pode facilitar. E outras medidas que podemos tomar para reduzir a carga sobre o Sistema de Saúde. Na vacina da gripe é incompreensível que Portugal, alertado por tantos especialistas desde o início da pandemia, apenas tenha conseguido dois milhões de doses quando temos uma população de potenciais vacinados superior a oito milhões. Temos dois milhões de vacinas para o setor público, para pessoas que são vacinadas gratuitamente pelo SNS, com mais de 65 anos, grávidas, funcionários de lares, profissionais de saúde do SNS – porque os do setor privado não têm direito à vacina, apesar de correrem elevado risco e de serem vetores de transmissão – e depois só há 500 mil vacinas para o setor privado.

Já se assiste a uma enorme pressão sobre as farmácias. Teme que possa haver descontrolo e pânico por não haver vacinas para todos?

Já se sente nas pré-encomendas. Não há mais do que 500 mil doses para o setor privado, pois o Governo não se antecipou, e como tal tem de haver uma gestão muito cuidadosa. Creio que o Governo não pode deixar as farmácias comunitárias sem orientações. Aliás, o Plano Outono-Inverno menciona a hipótese de as farmácias vacinarem as pessoas com as vacinas do SNS, o que acho muito bem, para facilitar o acesso, mas não é claro que acordo existe para que as farmácias sejam obrigadas a dar as vacinas. Fica-se com a sensação de que ainda há muito trabalho a fazer quando já estamos praticamente no outono. E outro pilar que me preocupa sobejamente é saber se haverá resposta para os doentes não-Covid, com cancro, com diabetes, com hipertensão arterial.

O plano do Governo menciona uma “taskforce”.

Aquilo que o Governo propõe é criar um grupo de trabalho e conhecemos o histórico dos grupos de trabalho. Precisamos de um plano de ação que indique como vamos lidar com as listas de espera que herdámos do antes da Covid e que se agravaram no período da pandemia, com quatro milhões de consultas de cuidados primários que não se realizaram, tal como um milhão de consultas hospitalares e mais de 100 mil cirurgias. Se houver um aumento substancial no número de casos de Covid-19, e se isso agravar ainda mais as listas de espera, a mortalidade excessiva vai aumentar e a qualidade de vida das pessoas vai degradar-se, particularmente dos mais doentes e mais vulneráveis. É fundamental haver uma resposta e aquilo que se sente é que o Plano fala num reforço dos serviços de saúde primária, mas no terreno a resposta a quem tem de recorrer ao médico de família é que os centros de saúde estão fechados ou os telefones não são atendidos ou há objetivamente dificuldade em responder a todos.

E depois temos consultas telefónicas a doentes cardíacos ou oncológicos, o que estará longe de ser a melhor solução.

Haverá situações de receituário em que, se calhar, uma teleconsulta será suficiente, mas aquilo que nos tem chegado é que há situações em que por dificuldade de resposta a única resposta possível é a teleconsulta. Parece-nos que, em relação aos doentes ditos não-Covid, precisamos de um plano de ação que implica utilizar o sistema de saúde como um todo. Se necessário for, recorrer ao setor social e ao setor privado para garantir resposta às listas de espera e garantir que, se houver um aumento do número de casos e de suspeitas de Covid-19, possamos aliviar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Precisamos, num país de baixos recursos, de garantir que todo o sistema é utilizado. Aquilo que se lê no Plano é criar um grupo de trabalho, o que nos parece manifestamente insuficiente.

Tal recurso a todo o sistema parece-lhe possível tendo em conta as posições do Governo e dos partidos da esquerda no que toca à saúde privada?

O Estado tem como seu primeiro dever proteger os mais vulneráveis, e se o SNS tiver uma procura tal que não consegue dar resposta, como sucedeu nos últimos meses, não utilizarmos todo o sistema de saúde, que inclui os setores público, privado e social, será estarmos a falhar perante os doentes. Mais importante do que questões ideológicas de cada partido e de cada um, é que quem está à frente do Ministério da Saúde é responsável pela saúde dos portugueses. O Governo e o primeiro-ministro têm a responsabilidade de garantir uma resposta para populações em situação de maior vulnerabilidade. Não consigo perceber que por uma questão ideológica se prefira deixar os doentes à espera, sem resposta, a ficarem piores da sua saúde e a verem degradar a sua qualidade de vida, prejudicando por a sua condição social e económica e, porventura, a condição económica da comunidade, por uma questão de teimosia ideológica. Temos de estar focados naquilo que importa, que é em responder às necessidades das pessoas.

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