Este fim-de-semana marcou o desaparecimento de uma figura notável e incontornável do panorama político americano, o Senador John McCain. E se a morte de um homem da sua notoriedade seria, por si só, notícia, torna-se mais relevante dada a encruzilhada em que se encontra a Presidência da “Terra dos Livres”.

Herói de guerra, Senador, candidato à Presidência dos EUA – todas estas caracterizações seriam apropriadas a McCain, e nenhuma dá pistas sobre a sua ideologia ou orientação política. Já se nos referirmos a ele como um porta-voz contra as alterações climáticas, defensor de políticas de acção afirmativa ou apologista de um maior escrutínio na venda de armas, tudo parece apontar para um Democrata liberal.

Quem acompanhou a longa carreira política de McCain sabe que tal rótulo não poderia estar mais errado – o Senador do Arizona era um Republicano conservador, inclusive um defensor do “direito à vida” (leia-se anti-aborto) ou opondo-se a movimentos para a legalização do casamento entre homossexuais; defendia uma política externa forte e dominante, tendo inicialmente apoiado a invasão do Iraque; e foi um fã de Reagan e da sua estratégia económica.

Mas um elemento distintivo nas orientações de McCain era a capacidade de as mudar, de as confrontar com um conjunto de factos e evidências e, se coerente, modificar a sua ideia da realidade, reconhecendo um erro de análise. Aliás, foi assim que chegou a várias das posições que iam contra a génese do seu partido e até contra afirmações suas no passado (como a sua alteração relativamente às políticas de controlo de armas ou a assuntos LGBTQ+). E terá sido assim que se opôs ao agora Presidente e às suas afirmações inflamatórias, discriminatórias e ofensivas, que qualquer ser humano dotado de raciocínio crítico veria como contraditórias ao espírito em que foram fundados os EUA.

Ainda que profundamente conservador (especialmente se descontextualizado do puritanismo norte-americano), McCain não deixava o seu discurso extremar, procurando muitas vezes o compromisso “a meio caminho” em vez do belicismo e polarização demasiado frequentes na política contemporânea.

Esta tendência foi crescendo ao longo dos anos, ao ver o extremismo em que caía o Partido Republicano, e que culminou na eleição do mais polémico Presidente das últimas décadas (ou séculos); ainda assim, e apesar desta imagem desalinhada que alguns recordarão, é também impossível não associar McCain a este movimento de descrédito da massa intelectual americana, radicalização de posições conservadoras e intolerância generalizada, dada a sua escolha para Vice-Presidente na corrida de 2008, Sarah Palin.

A então Governadora do Alaska pegou num discurso odioso, ignorante e amargurado que era transmitido em televisões claramente tendenciosas (olá, Fox News) e exportou-o para o main stage da política americana, as Presidenciais. Tipo um aperitivo para a estupidez que reina no mundo livre desde Janeiro de 2017. Assim, McCain abriu caminho para o monstro que viria a combater, apresentando-se como a face do conservadorismo moderado – que só nesse benchmark da democracia que é a América não tem lugar, engolido por uma bicefalia que seca tudo à sua volta.

John McCain fará muita falta à saúde política americana. É que, apesar de ter sido vencido por um tumor no cérebro, este claramente funcionava de formas que a sociedade conservadora americana ainda não conseguiu atingir. E, sendo obviamente um homem com defeitos – como o são, por definição, os Homens –, no seu caso acho que “inconsistência” não poderá ser visto como um deles, apesar das suas mudanças de opinião. É que não há mérito nenhum em estar-se consistentemente do lado errado.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.