A notícia é conhecida e nunca foi desmentida: no seu entreposto de Baltimore, a Amazon montou um sistema automático de medição da produtividade dos seus trabalhadores. Aparentemente, quem lá trabalha usa uma pulseira que mede cada passo e movimento podendo estabelecer com clareza quantas vezes as pessoas vão ao quarto de banho ou quantos movimentos de braços fazem para completar as bandejas de produtos que lhes passam pela frente, em tapetes rolantes.
Com o terror de serem despedidos, houve quem terminasse a urinar em garrafas que tinha junto a si. Mas, apesar de tudo, cerca de 300 acabaram despedidos. Por um robô, diga-se. Pela simples razão que ninguém, nenhum supervisor, gestor ou funcionário da empresa interveio na decisão de despedimento. Tal como o sistema de controlo, também o despedimento é automático. Espantosamente, ou talvez não, a Amazon acha que o sistema exorta os trabalhadores a uma maior produtividade (?!).
Na última semana, o país seguiu enfeitiçado uma crise política em redor da reposição do tempo de carreira perdido pelos professores e da sua possível reposição. Sabemos também que, pela sua condição de quadros da função pública, os professores não podem ser despedidos, nem hoje, nem no futuro. Portanto, de um lado temos a completa desumanização do mundo laboral, do outro a completa secundarização de todos os valores sociais ao império do direito ao trabalho em todas as suas vertentes.
É, certamente, com apreensão que olhamos para as práticas da Amazon. Pior, com tudo o que sabemos do modo de funcionamento de muitas plataformas digitais on-line, há razões para temer que aquela realidade seja cada vez mais frequente. Os condutores de Uber, por exemplo, são classificados por estrelas (dadas por nós, os clientes). O sistema está montado para que seja sempre o condutor com mais estrelas a ser chamado em primeiro lugar. Quem for caindo na classificação em breve nunca será indicado para nenhuma corrida e assim será “automaticamente despedido”.
Será então legítimo garantir o direito perene ao posto de trabalho, independentemente da competência, assiduidade e preparação demonstradas? Mais, deverão as sociedades garantir a progressão salarial de classes laborais inteiras por mera antiguidade? Todas as forças políticas em Portugal acham que sim. Sim, todas. O próprio Partido Socialista acha que sim, apenas não no mesmo grau que os demais.
A razão para tal estado de coisas no século XXI tem justificação nos casos extremos que aqui ilustrei. E, é muito importante sublinhar que em Portugal há milhares de condutores Uber. Não é apenas nos Estados Unidos que há despedimento automático. Cá também. Portanto, não são apenas os partidos que estão a deslocar-se para os extremos.
A realidade laboral começa, também ela, a definir-se nos extremos e a acantonar-se em dois grandes grupos: um primeiro, mal pago, precário, sem direitos estatutários, em que o homem ou a mulher são meras rodas dentadas na máquina da produção, qual distopia de Charlie Chaplin; no outro um grupo de trabalhadores proprietários do seu posto de trabalho, com remuneração sempre crescente e protegidos pelas leis dos Estados. A cada dia que passa, todas as profissões se vão deslocando em direção a um extremo ou ao outro.
Como país podemos e temos que recuperar o bom-senso. O trabalho é um direito que se merece, nos humaniza e contribui para a evolução societária. Ele harmoniza a nossa existência e dá-nos uma razão para ela. O trabalho é demasiado sério para ser apropriado ou instrumentalizado pelo capital ou pelas corporações. Se há matéria em que se impõe o equilíbrio é na forma como regulamos o trabalho e a sua relação com cada um, com o Estado e com o capital. Está na hora de despertarmos para o facto que a radicalização a que assistimos de muitos grupos sociais tem por causa o que está a suceder no mundo do Trabalho.