A globalização, com todas as suas imperfeições, moldou um mundo mais interligado e eficiente nas últimas décadas. A circulação livre de bens e serviços permitiu preços mais acessíveis, maior diversidade de oferta e o desenvolvimento de cadeias de produção que atravessam continentes. Contudo, o ressurgimento das tarifas e das guerras comerciais ameaça inverter este progresso – e o impacto recai diretamente sobre os consumidores. Portugal não é exceção.
O uso de tarifas como instrumento de política económica tem uma longa história. São frequentemente justificadas como formas de proteger a produção nacional, corrigir desequilíbrios comerciais ou responder a práticas desleais. Mas, no essencial, há um ponto que raramente é dito com clareza: tarifas são impostos sobre o consumo. Quando um país decide impor tarifas sobre produtos importados, está, na prática, a taxar quem os compra – ou seja, os cidadãos.
Esse encargo é invisível, mas real. Ao aumentar os preços dos bens importados, as tarifas limitam a concorrência e pressionam a inflação. Empresas nacionais que dependem de componentes ou matérias-primas externas veem os seus custos aumentar. E o consumidor final – que muitas vezes não tem alternativas viáveis – paga mais por menos.
Um setor particularmente atingido por estas dinâmicas é o das bebidas espirituosas. Ao longo dos anos, esta indústria tem sido recorrentemente usada como “moeda de troca” nas tensões comerciais entre grandes blocos, sobretudo entre os Estados Unidos e a União Europeia. A razão é simples: é uma indústria de elevado valor acrescentado, com marcas reconhecidas e grande visibilidade pública – o que a torna um alvo eficaz para pressões diplomáticas. Basta recordar as tarifas adicionais aplicadas pelo governo norte-americano, durante a administração Trump, sobre o whisky escocês e outros destilados europeus em retaliação por subsídios ao setor aeronáutico europeu.
A UE respondeu com tarifas sobre produtos americanos, como o bourbon. Resultado: perdas significativas de mercado, distorções na concorrência e impacto direto nas exportações – inclusive portuguesas. Nova administração Trump e as retaliações europeias usam de novo as bebidas espirituosas.
Portugal, embora não esteja no centro do palco destas disputas, acaba sempre por ser arrastado. As bebidas espirituosas nacionais, como a aguardente vínica ou de medronho, o licor de ginja, o rum da Madeira, enfrentam maiores dificuldades de entrada em mercados externos em contexto de guerra tarifária. Ao mesmo tempo, os preços no mercado interno disparam, penalizando os produtores e os consumidores.
Mais grave ainda é o contexto fiscal nacional. Portugal já impõe impostos de consumo extremamente elevados sobre estas bebidas, como o Imposto Especial sobre o Álcool e as Bebidas Alcoólicas (IABA), que afeta a competitividade interna e externa dos nossos produtos. Neste cenário, a perspetiva de uma escalada tarifária à escala internacional – onde a Europa e os EUA parecem novamente caminhar para o confronto – torna-se especialmente preocupante. Estaremos, na prática, a pagar duas vezes: primeiro com impostos nacionais, depois com tarifas internacionais. E a fatura é paga silenciosamente no supermercado, no restaurante ou na exportação que deixa de acontecer.
Esta lógica é transversal a outros setores. As guerras comerciais raramente são ganhas por alguém. Criam tensão, geram incerteza e provocam perdas económicas difusas, mas profundas. O pretexto para as iniciar pode ser estratégico, mas os seus efeitos são quotidianos: preços mais altos, menos escolha e oportunidades perdidas para as empresas que mais precisam de estabilidade para competir.
Em Portugal, a situação adquire contornos ainda mais inquietantes quando observamos a ausência quase total deste tema no debate político. A questão das tarifas e do comércio internacional simplesmente não está presente nas campanhas eleitorais, nem no discurso das principais forças políticas. Às vésperas de novas eleições legislativas, fala-se (e bem) de salários, habitação, serviços públicos. Mas ignora-se uma dimensão estrutural da economia: a forma como o país se integra nos fluxos internacionais, como protege as suas indústrias e como responde às ameaças externas no comércio global.
É particularmente lamentável que a defesa dos interesses das indústrias nacionais e europeias não mereça maior atenção. Num mundo cada vez mais fragmentado, onde os blocos económicos competem não só com preços, mas também com normas, regulações e estratégias de influência, o silêncio pode ser interpretado como fraqueza. A Europa precisa de mecanismos eficazes de defesa comercial, mas também de uma política coerente que não sacrifique setores como o agroalimentar, os vinhos ou os destilados sempre que surgem disputas noutras áreas.
Proteger os consumidores não é apenas evitar que paguem mais no imediato. É garantir que as suas escolhas continuam a existir, que as empresas que produzem com qualidade têm acesso a mercados e que os empregos associados ao setor exportador não desaparecem entre retaliações e tarifas.
O desafio está lançado: queremos um país e uma Europa abertos, mas com regras; competitivos, mas não vulneráveis; atentos às suas indústrias, mas também aos consumidores. E, sobretudo, queremos um debate político à altura do mundo em que vivemos – e não uma discussão fechada entre muros de silêncio fiscal e retórica desatualizada.