Meu querido Santo António,
Em Lisboa tão popular,
Explica à nossa gente
Que ser autêntico não é não mudar.
Há uns anos fiz uma viagem pela Holanda. Nas informações que recolhi, Marken surgia como visita obrigatória, já que seria uma das localidades mais autênticas dos Países Baixos. Para esse epíteto concorria o facto de os seus habitantes continuarem a envergar o traje tradicional. Achei a ilha pitoresca, com as suas casas em madeira e pontes com nome de mulher, mas gente a calçar tamancos não me pareceu coisa muito genuína. A semana passada, a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior decidiu que não haverá senão música portuguesa no arraial de Alfama, numa defesa daquilo que são (ou que ela considera serem) as tradições dos Santos Populares. Não percebi se se poderá passar música de portugueses que cantam em inglês, mas suspeito que a playlist autorizada só contemplará canções na senda de “São João Bonito” (apesar da sua letra ter uma óbvia inconsistência de calendário). E lembrei-me da minha ida a Marken.
No meu entendimento, algo que precisa de ser imposto dificilmente se pode candidatar a ser autêntico. Mas é a opinião de quem não viveu a “política do espírito”. Talvez por isso não encontre em imutabilidade um sinónimo de autenticidade e defenda que a inovação não corrompe as tradições. Tradições essas que são, em muitos casos, tão antigas quanto o Estado Novo e constituem testemunho da eficácia de António Ferro, Director do Secretariado de Propaganda Nacional, que, a partir de 1940, passou a ter a tutela dos órgãos centrais de turismo. Marchas populares, noivas de Santo António ou um colorido Galo de Barcelos são invenções da sua ideia de portugalidade. É essa a imagem de autenticidade que se quer preservar?! Alguns discursos que por aí se ouvem e lêem e esta atitude da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior fazem-me supor que sim.
Mais logo, na Avenida da Liberdade, o desfile far-se-á sob o mote “Lisboa, cidade do mundo”. A divisa parece pensada para o momento auspicioso que o turismo vive. Uma actividade que Salvatore Settis, referindo-se a Veneza, chamou de predatória, mas na qual eu encontro – além do manifesto contributo para o rendimento e o emprego – um factor de valorização da nossa própria identidade. O projecto da Catarina Portas e dos seus “antigos, genuínos e deliciosos produtos de criação portuguesa” ou das faianças Bordallo Pinheiro estão aí como exemplos. É do nosso encontro com o outro que começamos a descobrir o que nos define e a apreciar a nossa cultura. Só na fonética turismo rima com fascismo.
A autora escreve segundo a antiga ortografia.
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