Há uns anos, a propósito das crises económicas, um par de economistas laureados escreveu um famoso livro relembrando o carácter recorrente das crises e glosando a crença dos decisores políticos e económicos, de cada era, ao pensarem que a sua crise fora diferente, muito diferente, das que os antecederam.
Esse livro salientava como esse carácter alegadamente distintivo, essa percepção errada, os impediu de perceber a tempo as circunstâncias e de actuar oportunamente sobre causas e consequências das crises que tinham pela frente.
Como quase sempre acontece, a crise em curso afecta de forma desproporcional as pessoas e menos os factores de produção ligados ao capital. Até aqui, nada de novo. Mas desta vez tem um impacto muito relevante e de forma muito assimétrica sobre os empregadores e os trabalhadores dos serviços, e não tanto da indústria. Afecta principalmente todos aqueles sectores, trabalhadores e empresários, cuja natureza de funções não permite, ou não rendibiliza, o teletrabalho.
Para perceber isto, basta estar atento ao proliferar de portugueses sem-abrigo nas nossas cidades. Um exército esfomeado, com frio, que desta vez tem nas suas fileiras pessoas pouco habituais. No entanto, se olharmos com olhos de ver, constatamos que são rostos familiares. O trabalhador da oficina, a ajudante de cabeleireira, a empregada de balcão da pastelaria.
Uns e outros desempregados, amiúde ambos os progenitores, lado a lado com crianças. Ou em lay-off. Pessoas incapazes de pagar os quartos onde viviam. Pessoas a quem os subsídios chegam, se chegarem, demasiado tarde.
Cerca de 24% da população está em sofrimento extremo. Não o psicológico, de não conseguirem desligar-se do teletrabalho ou da ausência de afectos físicos com amigos e familiares. Mas o sofrimento de quem não tem onde se abrigar, tomar banho, alimentar ou dormir em segurança.
Acresce que este mês acabam as moratórias privadas de parte dos créditos bancários e que os processos de execução por dívidas ao Fisco e à Segurança Social serão retomados. Muitas das empresas que retomaram a sua actividade estarão em condições muito mais débeis do que há um ano atrás. Por isso, só não antecipa o que lá vem quem não quer.
Vivemos num contexto em que a Europa que não consegue vacinar os seus cidadãos em tempo útil. Uma Europa em que alguns Estados-membros não fazem chegar o dinheiro a quem precisa.
Exige-se um sobressalto cívico. Temos que tomar o destino comum nas nossas mãos. De outro modo, a burocracia de Bruxelas vai permitir, por inacção e lentidão, que uma chacina social tenha lugar.
Deve o sector social dar o exemplo e liderar o combate à pobreza extrema dos trabalhadores que agora estão expostos à crise.
Mas exijamos também aos poderes públicos resolução, determinação e que façam chegar dinheiro, dinheiro mesmo, às pessoas que sofrem. Exijamos das empresas lucrativas que suspendam processos de restruturação. Isto não pode continuar.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.