Vivemos tempos extraordinários. Nenhum leitor pode discordar desta afirmação. Extraordinários no sentido em que escapam à normalidade em que nos entregávamos à rotina sem dó, nem piedade. Agora tentamos manobrar por entre adversidades, constantes obstáculos, progressos e retrocessos, ao ponto de as nossas vidas se terem tornado, amiúde, uma caricatura grotesca, temperada com boas doses de absurdo.

Posto isto, é difícil para qualquer artista propor uma verdadeira sátira dos nossos dias, e transformar a realidade numa ficção com uma mensagem que pretende ser, acima de tudo, uma crítica social.

Quando “Don’t Look Up”, o filme de Adam McKay (Netflix), começou a fazer as rondas por todas as televisões, cedo irromperam algumas vozes sobre a falta de subtileza, a mediocridade, a banalidade ou, em total contraste, o humor sofisticado e brilhantismo da sátira em questão.

Após ver o filme, não posso deixar de sentir que a mensagem é demasiado óbvia e que a sátira sai extremamente fragilizada por quase gritar aos nossos ouvidos “vejam, o nosso mundo transformou-se nesta caricatura em que ignoramos os perigos e vivemos fechados numa realidade alternativa, evitando verdadeiras soluções para melhorar o nosso estilo de vida”.

Mas lá porque cresci a ver sátiras brilhantes como “Network” (“Escândalo na TV”) de Sidney Lumet, sobre o mundo do jornalismo transformado em entretenimento, ou “Dr. Strangelove” de Stanley Kubrick, sobre a irracionalidade da Guerra Fria, isso não significa que não consiga apreciar a sinceridade dos produtores e atores envolvidos em “Don’t Look Up” quando tentam passar a mensagem certa.

A mulher cientista é ignorada como histérica e agressiva, enquanto o homem cientista é visto como um herói televisivo que conforta os telespetadores. O empresário multimilionário tem nas suas mãos o verdadeiro poder político, ao controlar a presidente dos EUA como um fantoche. As linhas são muito difusas entre informação e entretenimento. As celebridades dominam a imprensa com as suas vidas totalmente fúteis. Muitas espécies que habitam o nosso planeta extinguem-se enquanto mergulhamos a cabeça em espelhos negros, o telemóvel, que nos devolvem o nosso reflexo alienado.

É difícil criar uma ficção satírica quando vivemos em plena sátira a uma escala global nunca antes vista. E o humor só dura por breves segundos, quando somos confrontados com a noção de que tudo isto é verdade e ninguém sabe verdadeiramente o que está a fazer.

Em Portugal, não escapamos também à nossa dose de absurdo, especialmente a nível político, quando o país foi sujeito a eleições antecipadas e ninguém compreende o motivo a não ser incompatibilidades de egos e ideologias, como se partidos com assento parlamentar se transformassem em parceiros numa relação em que o divórcio se tornou a única saída possível. E se é verdade que nunca há uma boa altura para encetarmos mudanças de vida, o divórcio surge numa altura crítica para o país, quando está a tentar sair de uma situação de enorme fragilidade económica e social. Ou será que alguém pode realmente negar o absurdo da situação que estamos a viver?

E assim vamos, de sátira em sátira. O problema é só um: nada disto é ficção. Tudo é real e todos sofremos as consequências.