Com a pandemia de Covid-19, a saúde tem vindo a ser usada sistematicamente pelos Estados como arma de arremesso, tanto no plano interno como no plano externo. Apesar de a retórica destacar amplamente a fraternidade e cooperação globais como a única possibilidade de salvação coletiva, os nacionalismos e os interesses corporativos têm vindo acabado por se impor. A crise pandémica veio reforçar o pior das tensões e contradições políticas, da dimensão local à dimensão global.

Muito recentemente, a Autoridade Palestiniana acusou Israel de impedir a entrega de vacinas na Faixa de Gaza. Segundo a própria Organização Mundial de Saúde, que já havia avisado para este risco, impedir que a população palestiniana seja vacinada é ilegal e imoral.

O artigo 56 da Convenção de Genebra de 1949 é claro quanto a esta matéria. Israel tem o “dever de garantir as medidas profiláticas e preventivas necessárias para combater a propagação de doenças contagiosas e as epidemias” no território ocupado. Não deveria ser preciso um documento a dizê-lo, mas existe e não é cumprido, muito embora Israel tenha recentemente permitido a entrada de algumas vacinas.

Este impedimento à vacinação é uma securitização da saúde e serve como arma de arremesso. Está aliás a ser abertamente assumido como tal pelo governo de Benjamin Netanyahu quando a responsabilidade da aprovação do envio das vacinas da Cisjordânia para Gaza é do conselho de segurança nacional israelita. Mais evidente ainda é quando Israel tenta fazer depender o envio de vacinas para a Palestina da entrega de dois civis israelitas detidos pelo Hamas, bem como dos corpos de dois soldados mortos numa intervenção militar de 2014. Este tipo de prática política coloca vidas em risco e representa a violação reiterada de Direitos Humanos por parte do Estado Israelita.

Israel anunciou também a criação de um certificado de vacinação. Este certificado consiste grosso modo na identificação de quem já tomou a vacina, através de um QR code que dá liberdade de acesso a locais públicos conforme quem a tenha ou não tomado. Este procedimento é tanto questionável do ponto de vista ético como do da eficácia, visto que não é certo que as vacinas assegurem a não transmissão do vírus.

Abre-se assim mais uma via para a segregação e o tratamento injusto do povo palestiniano, desta feita uma segregação e injustiça perpetradas por via sanitária. As forças de segurança israelitas já têm mesmo instruções para atuar contra pessoas suspeitas de ter contraído Covid-19 usando medidas de controlo tecnológico e de contraterrorismo.

O aproveitamento da crise sanitária por parte do Estado israelita é apenas a continuação do que tem sido uma prática política reiterada de desrespeito pelos Direitos Humanos e de atropelo das decisões das Nações Unidas. Mas, para além desta injustiça, a rápida vacinação da população israelita esconde um negócio sinistro entre o Estado e as farmacêuticas. Em troca da garantia de uma vacinação mais veloz e à frente de outros Estados, Israel concede acesso aos dados de saúde da sua população à farmacêutica Pfizer. Assim, o ‘milagre’ da vacinação israelita encobre o mais que questionável negócio associado à troca de informações pessoais e valiosas, a crescente mercantilização da saúde e o nacionalismo das vacinas.

Sejamos claros. Não há neste texto qualquer posição antissemita; o Estado e o governo israelitas não são o povo israelita e a crítica à securitização e comodificação da saúde não se restringe a Israel.

O processo de negociação entre a União Europeia (UE) e várias farmacêuticas, com cláusulas escondidas e  implicações geopolíticas (até à data a UE só aceita vacinas norte-americanas ou europeias), ou ainda quando a China usa a vacinação para maximizar o seu soft power no sistema internacional, são sinais abundantes de como a produção e distribuição de saúde enquanto bem público global é a novíssima dimensão onde se desenvolve a competição por influência e poder nas relações internacionais.

Contrariamente a estas práticas de desequilíbrio e injustiça, a Saúde Global deve pautar-se por princípios e soluções que promovam a cooperação, a equidade e a justiça, em detrimento do nacionalismo exclusivista e dos interesses de mercado mais elitistas.

O nacionalismo das vacinas é aliás motivo de crítica e avisos por parte do Secretário-Geral das Nações Unidas António Guterres ao Conselho de Segurança, dando conta de que, até agora, 10 dos países mais ricos administraram 75% de todas as vacinas disponíveis contra a Covid-19. Isto significa que mais de 130 países não receberam uma única dose. Em 108 milhões de pessoas vacinadas, apenas 4% é referente a países em desenvolvimento, e grande parte delas na Índia.

Os países ricos, que apenas representam 16% da população mundial, já asseguraram 60% das vacinas. Austrália, Japão e Canadá têm apenas 1% de casos Covid-19 em todo mundo, mas já contam com mais vacinas que toda a América Latina e Caraíbas. Israel encontra-se em 1.º lugar no ranking de população vacinada.

Torna-se mais que nunca necessário reconhecer que não é possível superar desafios globais como as alterações climáticas, a corrupção financeira ou as crises pandémicas com respostas isoladas e de ótica meramente nacional. Como está patente numa declaração assinada recentemente por 140 dirigentes mundiais, “(…) o acesso às vacinas e tratamentos como bens públicos globais é do interesse de toda a humanidade. Não podemos permitir que os monopólios, competição bruta ou nacionalismo míope se atravessem neste caminho”.

É urgente garantir que as práticas e mecanismos institucionais da Saúde Global saiam reforçados desta crise pandémica e sirvam de apoio à eliminação das injustiças e desigualdades que persistem a nível global. Se alguma lição a atual situação pandémica permite aprender é que a cooperação entre povos e Estados constitui o grande desafio e imperativo moral dos nossos tempos.