A saúde mental, largamente ignorada no passado, constitui hoje uma das mais importantes questões de saúde pública em todo o mundo.

Esta mudança deve-se sobretudo à evidência acumulada nos últimos 20 anos sobre a elevada prevalência das doenças mentais e o impacto que estas têm em vários domínios da vida das pessoas, das famílias e da sociedade. Graças aos avanços da epidemiologia psiquiátrica, sabemos hoje, por exemplo, que, em cada ano, 23% dos portugueses sofrem de uma perturbação mental, e que estas perturbações, não só provocam enorme sofrimento individual, como estão associadas a níveis elevados de incapacidade nas atividades da vida diária, no trabalho e nas relações com os outros, e são responsáveis por custos económicos para a sociedade de enorme magnitude.

O Estudo sobre a Carga Mundial das Doenças (“Global Burden of Disease Study”), realizado pela OMS, pelo Banco Mundial e pela Universidade de Harvard, teve neste domínio um papel decisivo, ao desenvolver novos conceitos e métodos que passaram a permitir medir o impacto das perturbações mentais a nível da sociedade, não só através dos efeitos das doenças a nível da mortalidade, como também a nível da incapacidade a elas associada.

Foram estes novos métodos de análise que tornaram possível saber que, a nível mundial, as doenças mentais são responsáveis por 13% da totalidade dos anos de vida perdidos por morte prematura ou incapacidade grave devida a qualquer doença, e que causam mais anos de vida com incapacidade (32,4%) do que qualquer outro tipo de doenças.

Este impacto é ainda ampliado pelo facto de as pessoas com doenças mentais apresentarem um maior risco de sofrer de problemas de saúde física, contribuindo assim através desta co-morbilidade para níveis acrescidos de mortalidade e incapacidade. E pelo facto de muitas pessoas, embora não sofrendo de uma doença mental, apresentarem problemas mais ligeiros de saúde mental (geralmente sintomas de ansiedade e de depressão associados a dificuldades da vida), que lhes causam sofrimento e interferem nas suas capacidades de relação com os outros, na sua produtividade e na sua criatividade.

Por tudo isto, a saúde mental é, de facto, uma questão primordial da saúde. Mas o seu impacto vai muito mais para além da saúde, porque, como sabemos hoje, ela é também um fator fundamental para o desenvolvimento sustentável das sociedades.

Saúde mental: uma questão essencial para o desenvolvimento sustentável

Embora mencionada de forma explícita no Objetivo 3 (Boa saúde e bem-estar), a saúde mental é relevante para todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Uma das principais razões para esta relevância tem a ver com a estreita relação existente entre doença mental e pobreza.

Trata-se de uma relação circular que se autoperpetua. Níveis mais baixos de rendimento, educação, habitação e apoio social aumentam o risco de se sofrer de uma doença mental. Mas, ao mesmo tempo, a ocorrência de doenças mentais leva a uma cascata de acontecimentos que acaba por agravar a pobreza e outras variáveis socioeconómicas a ela associadas.

A literatura mostra que a evidência desta associação é muito robusta, particularmente no que respeita à associação com baixo estatuto social e económico, baixo nível de educação, desemprego, preocupações financeiras, isolamento social e habitação deteriorada.

Um fenómeno semelhante ocorre com o capital social. Sociedades com níveis mais altos de participação cívica e normas de reciprocidade que facilitam a cooperação para benefício mútuo protegem as pessoas do risco de sofrer de doenças mentais, quer através das suas componentes estruturais (coesão social, pertença a organizações), quer através das suas componentes cognitivas (confiança, sentimento de pertença, partilha de valores). Simultaneamente, uma prevalência elevada de doenças mentais pode ter um impacto negativo no capital social, comprometendo assim o desenvolvimento económico e a sua sustentabilidade.

Outra razão que explica a importância da saúde mental para o desenvolvimento sustentável tem a ver com os enormes custos que as doenças mentais acarretam para a economia.

Uma estimativa dos custos da doença mental para a economia mundial entre 2011 e 2030 aponta para um custo de 16 triliões de dólares – mais do que os custos combinados do cancro, diabetes e doenças respiratórias.

Um estudo europeu de 2012 sobre os custos das doenças mentais estimou, para Portugal, um custo anual total de 7.615 milhões de euros, com 37% deste valor (2.818 milhões) relacionados com custos diretos associados a cuidados de saúde, 23% (1.752 milhões) relacionados com custos diretos não médicos e 40% (3.046 milhões) resultantes de custos indiretos.

Uma parte importante dos custos indiretos deriva do elevado impacto que as doenças mentais têm na produtividade do país, em consequência do absentismo e presentismo que resultam da associação especialmente significativa das doenças mentais a incapacidade. De acordo com os resultados do Estudo Nacional de Saúde Mental, as pessoas que sofrem de uma qualquer perturbação mental, no nosso país, faltaram ao trabalho no ano anterior, 22,5 dias, em média, por causa da sua perturbação mental, estimando-se ainda que a incapacidade parcial resultante de perturbações mentais seja responsável, em países com o nível de desenvolvimento de Portugal, por cerca de 23 dias/ano de presentismo.

Em conclusão, a existência de ligações muito estreitas entre saúde mental e a maioria das questões fulcrais do desenvolvimento – desde o crescimento económico à educação, passando pelas desigualdades, o trabalho e as mudanças climáticas – está hoje amplamente comprovada.  No entanto, as pessoas que sofrem de doenças mentais estão entre as que têm maior probabilidade de serem excluídas das intervenções de desenvolvimento e continuam a ser um dos grupos com menos voz para defender os seus direitos, o que nos remete para a questão dos direitos humanos.

Saúde mental e direitos humanos

Como referiu Arthur Kleinman, da Harvard Medical School, a continuada negligência das necessidades de saúde e direitos humanos das pessoas com doenças mentais constitui um “fracasso da humanidade” e representa um dos maiores escândalos de saúde pública do nosso tempo.

Apesar dos progressos já registados nestes domínios, um largo número de pessoas com doenças mentais continuam, em todo o mundo, a ser ostracizadas e isoladas da sociedade, a viver por longos períodos de tempo em instituições com condições de vida desumanas, a ser sujeitas a tratamentos coercivos desnecessários, sem o seu consentimento informado e sem acesso a mecanismos para proteger os seus direitos, a ver negados seus direitos civis e políticos, e a ser discriminadas  em relação ao emprego, educação e cuidados com a saúde física.

A adoção, em 2006, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), e a sua ratificação por 181 países, entre os quais Portugal, representou um marco fundamental na defesa dos direitos das pessoas que sofrem de incapacidade psicossocial associada a doença mental, ao vincular todos estes países a tudo fazer para que uma série de direitos que são especialmente importantes para estas pessoas sejam efetivamente respeitados. Entre estes, merecem um destaque especial o direito ao acesso a cuidados de qualidade, o direito à não discriminação na educação e emprego, o direito a uma vida independente e à inclusão na comunidade, e o reconhecimento da capacidade jurídica destas pessoas em condições de igualdade com todas as outras.

Muitos passos foram já dados no nosso país no sentido de se assegurar o respeito destes direitos. Por exemplo, a Lei de Saúde Mental, aprovada em 1998, regulamentou pela primeira vez entre nós os procedimentos a seguir nas situações de internamento compulsivo de pessoas com doença mental e definiu os princípios gerais de uma política nacional de saúde mental claramente baseada nos princípios da inclusão das pessoas com doenças mentais na comunidade.

O Plano Nacional de Saúde Mental, aprovado em 2008, assegurou, até à sua interrupção em 2011, avanços significativos na reforma dos serviços de saúde mental de acordo com os princípios definidos na Lei atrás referida. E o novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, aprovado em 2019, que incorpora já as recomendações da CDPD, consagra a adoção de uma nova abordagem com implicações profundas para o respeito dos direitos das pessoas com incapacidade psicossocial.

No entanto, muito continua ainda por fazer. O Estudo Nacional de Saúde Mental mostrou que mais de 40% dos casos graves de doença mental continua a não ter acesso a cuidados de saúde mental. Um outro estudo de âmbito europeu mostrou que as estruturas residenciais para pessoas com doença mental no nosso país têm um nível de qualidade muito mais baixo do que a média europeia em dimensões fulcrais dos cuidados. E uma avaliação de instituições psiquiátricas levada a cabo no contexto de uma iniciativa da OMS-Europa revelou insuficiências significativas e violações frequentes de direitos humanos em algumas das instituições estudadas.

Esta situação é ainda agravada pelo elevado estigma associado à doença mental existente no nosso país, pela escassez de serviços na comunidade, e pelas dificuldades experimentadas pelas pessoas com doença mental na defesa dos seus interesses.

Tempo para a ação

Ao longo das últimas décadas, diversas leis, políticas, planos e programas de saúde mental foram desenvolvidos em Portugal, com o objetivo de implementar as reformas dos serviços de saúde mental que há muito se sabe serem indispensáveis.

Graças a estes esforços, importantes avanços foram alcançados – por exemplo, na transição dos cuidados centrados nos hospitais psiquiátricos para cuidados nos hospitais gerais, na melhoria de serviços de saúde mental para crianças e adolescentes, na preparação das bases da Rede Nacional de Cuidados Continuados de Saúde Mental e lançamento dos primeiros serviços desta rede.  Contudo, o desenvolvimento das equipas comunitárias de saúde mental e de programas de reabilitação psicossocial, que constituem os elementos chave de um sistema moderno, ficou muito aquém do que inicialmente estava planeado.

A verdade é que nunca, até hoje, foi possível implementar uma política e um plano durante o tempo suficiente para se alcançarem resultados sólidos numa reforma que exige tempo e apoio político forte e continuado.

O programa do atual Governo e algumas medidas já tomadas – de que destacaria a constituição de um grupo para a revisão da lei de saúde mental – mostram que começa a haver um maior reconhecimento da importância da saúde mental por parte do poder político. Porém, devido aos constrangimentos financeiros vigentes nos últimos anos, a implementação do Plano Nacional de Saúde Mental – interrompida em 2011 – continuou adiada.

A crise atual desencadeada pela epidemia de Covid-19 constitui uma oportunidade única para mudar este estado de coisas e para que a saúde mental passe, de facto, a ser encarada por aquilo que é: um dos maiores desafios de saúde pública dos nossos dias.

Após seis meses de experiência da epidemia de Covid-19 não há ninguém em Portugal que não esteja consciente dos impactos que esta crise está a ter na saúde mental das populações, e que não perceba que esta está a ter um papel decisivo na superação da crise que estamos a viver. Com os problemas económicos e de desemprego que se avizinham, estes problemas vão certamente agravar-se ainda mais, e é hoje consensual que é necessário tomar, desde já, medidas que permitam mitigar os efeitos que irão ter nas populações mais vulneráveis.

Por outro lado, se as escolhas políticas certas forem feitas, os recursos que irão estar disponíveis no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal 2020-2030 tornarão possível fazer os investimentos na melhoria dos serviços de saúde mental que há muito têm vindo a ser adiados. Se tal acontecer, a saúde mental das populações melhorará, os direitos humanos das pessoas com doença mental serão mais protegidos. E o desenvolvimento sustentável da nossa sociedade será certamente facilitado.

 

José Miguel Caldas de Almeida assina este texto na qualidade de autor do ensaio “A saúde mental dos portugueses”, no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a Fundação Francisco Manuel dos Santos.