Há dias chegou-me uma petição online que me deixou chocado. Alguém que não se identifica, e autointitulado como “os habitantes de Arroios”, vinha repudiar a abertura de um centro de emergência para pessoas em situação de sem-abrigo na freguesia. A petição está pejada de mentiras para criar receio e mascarar a falta de empatia de quem a escreveu. Por isso, neste texto irei falar das mentiras dessa petição, do trabalho da Câmara Municipal de Lisboa (CML) na área das pessoas sem-abrigo e nas histórias de algumas dessas pessoas que conheci.

A petição começa por dizer que o “projeto piloto” do Casal Vistoso foi um fracasso e associa esse equipamento ao aumento da criminalidade e de consumos, e recusa a construção de um “Mega Centro de ajuda a sem-abrigo no Quartel do Largo de Santa Bárbara”. Vamos aos factos.

1) O centro de emergência do Casal Vistoso foi um de quatro que a CML abriu dispersos pela cidade (na primeira fase: Areeiro, S. Domingos de Benfica, Campo de Ourique e Alcântara) aquando do primeiro confinamento, em março de 2020. Na altura, o Governo deu a ordem de confinamento obrigatório em casa e as pessoas sem-abrigo pediram ajuda para se recolherem com medo do vírus. Apesar da competência legal em matéria de sem-abrigo ser do Governo, foi a CML que avançou com os centros de emergência para retirar as pessoas sem teto da rua.

2) Descobrimos que os centros estavam a ajudar muito mais do que as pessoas que já tinham caído na rua há anos. Nos primeiros dias desse confinamento, famílias inteiras que trabalhavam no turismo perderam tudo de um momento para o outro e encontraram nos centros de emergência um abrigo para reorganizar as suas vidas em pouco tempo.

3) Os centros são de emergência e ligados à crise pandémica. Servem para ajudar as pessoas sem-abrigo que estão há muito na rua e quem chegou agora por causa da crise. Com o fim das moratórias e a falta de apoio do Governo a situação pode piorar. Aliás, já há mais pessoas sem-abrigo (que não têm casa e vivem em albergues, ou casas precárias) e menos sem teto (que dormem na rua) em Lisboa do que em 2018, prova de que os centros de emergência estão a suster a crise social.

4) A PSP, a CML e a Junta de Freguesia do Areeiro têm reunido para debater o problema da criminalidade, mas os dados indicam que a vaga de crimes tem origem noutros locais e não no Casal Vistoso. Os consumos também não aumentaram: a sala de consumo vigiado passa no território para retirar os consumos da rua, graças ao centro de emergência muitas pessoas entraram em programas de reabilitação de drogas e álcool. Mas a petição alimenta o estigma de que as pessoas pobres são criminosas.

5) A petição diz que se vai limpar as outras freguesias e concentrar toda a resposta ali. É falso. A CML tem 11 respostas na cidade para as pessoas sem-abrigo espalhadas por várias freguesias: Beato, S. Vicente, Misericórdia, Areeiro, Marvila, Parque das Nações, S. Domingos de Benfica, Alcântara e brevemente Penha de França.

6) Os centros de emergência são de emergência, a resposta estará ativada enquanto estivermos em crise pandémica e social. A resposta perene são os albergues, os apartamentos partilhados e o programa Housing First que tem uma taxa de sucesso de 80%. Dentro de meses, teremos um total de 380 vagas de Housing First, numa resposta que rompe com a caridade e permite que as pessoas reconstruam as suas vidas. A ideia não é reter as pessoas, é encontrar-lhes resposta e sem essas respostas teríamos hoje, como resultado da crise, centenas de pessoas a viver nas entradas dos prédios por toda a cidade.

7) O centro de emergência do Quartel de Santa Bárbara na Estefânia, que estava vazio desde 2015, vai permitir retirar da rua muitas das pessoas que estão a dormir ao relento na freguesia. Nos centros de emergência o apoio é muito maior do que só a pernoita, há apoios ao nível da saúde, da higiene pessoal, da alimentação, do vestuário, do encaminhamento social, entre muitos outros, de forma a apoiar e integrar estas pessoas tão carenciadas.

O Centro de Emergência da Estefânia, à semelhança dos outros abertos noutras freguesias, será um motor de integração social, com espaço específico para mulheres e casais, e com apartamentos de transição, para quem já conseguiu emprego e autonomia. O último passo será voltarem para a sua vida, na sua própria casa.

8) Há anos atrás, a política da CML para tratar das pessoas em situação de sem-abrigo era aquilo que se chamava “as limpezas” (ver aqui). As tendas eram rasgadas, os pertences deitados ao lixo, os colchões eram molhados, não se permitia que as pessoas adormecessem com assédio constante. Ainda é assim noutros concelhos, mas em Lisboa essa política acabou: os Direitos Humanos são para cumprir e as pessoas em situação de sem-abrigo são para serem respeitadas.

9) O novo jornal online “A Mensagem de Lisboa” publicou recentemente uma reportagem sobre uma pessoa em situação de sem-abrigo que é uma história de amor: para cuidar da mulher, Jorge ficou sem-abrigo e escondeu-o dos filhos (ver aqui). Há dezenas de histórias iguais e diferentes, de amor, de abandono, de problemas psicológicos e, também, de consumos. Mas todas têm um traço comum: a facilidade com que alguém que pensa ter a vida estruturada cai na rua sem amparo.

Percebo a necessidade das pessoas e das famílias se sentirem seguras nas suas casas e nos seus bairros. Mas tenho dificuldade em perceber que se associe uma resposta de emergência para as pessoas mais vulneráveis com criminalidade só porque as pessoas são pobres. E não aceito que se aprofunde o estigma para com as pessoas em situação de sem-abrigo.

São precisas mais respostas sociais para as pessoas em situação de sem-abrigo, sendo que devíamos ter como objetivo comum retirar todas as pessoas da rua, ajudando-as na reintegração na sociedade e apoiando-as nos seus problemas específicos. Uma petição que aumenta o estigma contra os mais vulneráveis da sociedade é uma petição que mobiliza o ódio e, como tal, é algo que nos deve envergonhar.