De há uns tempos para cá, tornou-se hábito elogiar a “máquina fiscal” pela sua crescente “eficácia” na cobrança de impostos. A coisa começou quando Manuela Ferreira Leite colocou Paulo Macedo a dirigir a Autoridade Tributária (que ainda tinha outro nome), mas desde então, para mal dos nossos pecados, todos os governos que nos têm calhado em sorte insistem em vangloriar-se com os “resultados” do “combate” à evasão fiscal.

Uma recente reportagem da revista “Sábado” mostra bem a verdadeira natureza dessa “eficácia”: ao mesmo tempo que o fisco tem cada vez mais meios para saber “tudo” o quiser “sobre os rendimentos e o património dos contribuintes”, existe também um crescente “desequilíbrio de poderes entre os contribuintes e uma Autoridade Tributária (AT) que pode ser demasiado agressiva”.

Exemplos não faltam, desde o caso do senhor que, depois de vender a sua casa, foi obrigado pela AT a pagar impostos sobre um valor que nunca recebeu, esperou três anos para que o fisco respondesse (negativamente) à sua reclamação, e dez para que os tribunais lhe dessem razão, sem que o Estado o tenha já indemnizado como foi obrigado a fazer, até ao caso da senhora que cometeu um erro (a favor do Estado) no pagamento do IMT e a quem não lhe foi devolvido o valor em excesso (numa altura em que o Estado está a cobrar aos contribuintes verbas que não lhes foram exigidas, por erros do fisco).

Por outras palavras, Portugal transformou-se num Estado de autoritarismo fiscal sem limites. Só quem tenha andado a dormir nos últimos anos se surpreendeu com o que esta reportagem relatou. Nas últimas décadas, os vários partidos que se foram revezando no poder viram-se permanentemente encurralados entre duas necessidades.

Em primeiro lugar, a de usarem o Estado para redistribuírem a maior quantidade de riqueza possível pelas clientelas que deles dependem, e das quais eles próprios dependem ainda mais. Em segundo lugar, a de, para terem com que fazer essa redistribuição, manterem junto dos mercados financeiros o crédito suficiente para endividarem o Estado a preços minimamente comportáveis, e com esse propósito, cumprirem as exigências orçamentais que possibilitem a permanência no euro que dá a Portugal as taxas de juro baixas de que vai beneficiando.

Por terem de alimentar os “boys” e as “girls” que gravitam em torno do poder político, os partidos de governo não podem cortar de forma “excessiva” as despesas do Estado. Por terem de, no mínimo, acalmar os receios europeus quanto à “indisciplina orçamental” portuguesa, têm de garantir que a diferença entre o que uma parte significativa do país espera do Estado e aquilo que o Estado lhes pode oferecer – ou seja, o défice – seja a menor possível. E para o conseguirem, precisam que o Estado opere à margem da razoabilidade e da lei.

Como explicou em tempos Tiago Caiado Guerreiro, não é normal que se abram em Portugal cerca de 1100% mais processos-crime por incumprimento fiscal do que nos Estados Unidos, um país muito maior (e onde o IRS – o equivalente à nossa AT – é tudo menos brando), e o facto de que isso acontece mostra bem como “o Estado faz maciçamente ilegalidades todos os dias”. Para “combater a fuga ao fisco”, a AT inverte o ónus da prova apesar da lei teoricamente não o permitir, tratando os acusados como culpados à partida, exigindo-lhes que paguem o que muitas vezes não devem e que provem a sua inocência para só depois, e só caso tenham sorte, receberem o que indevidamente lhes foi exigido pagar.

Todos os portugueses já receberam (ou conhecem quem tenha recebido) uma carta da AT a acusá-los de uma dívida que não têm, ameaçando-os de multas, penhoras ou processos judiciais caso esta não seja saldada, geralmente num prazo curto, na esperança de que ou a incompreensão do que lhe está a ser exigido (essas notificações são deliberadamente ilegíveis) ou o receio dos custos inerentes a um longo processo no tribunal os levem a pagar sem protestar. Se por acaso ou ingenuidade protestam, e os tribunais lhes dão razão, o Estado português tem (como a reportagem da “Sábado” mostra) o triste hábito de ignorar essas mesmas decisões.

É claro que quando as coisas são ao contrário, a prepotência e o desrespeito pela lei por parte do Estado se mantêm intactos. Tal como abusa do seu poder para obter a maior receita possível na cobrança fiscal, o Estado, quando chega a hora de pagar, procura sempre tirar partido da (natural e inevitável) assimetria de poder de que goza para evitar tanto quanto possível pagar o que deve a quem o deve. Daí os atrasos nos pagamentos aos fornecedores, daí os atrasos a pagar aos prestadores de serviços, daí os atrasos na atribuição de pensões.

O abuso de poder permite ao Estado cobrar mais do que aquilo que devia receber, e o abuso de poder permite ao Estado pagar menos do que aquilo que devia pagar. No meio estão os cidadãos, obrigados a fazer o que o Estado lhes manda ou a rezar para que um dia recebam o que o Estado lhes deve.

Quando quem deve zelar pelo cumprimento da lei a ignora e viola recorrentemente, a lei não existe. Quem lhe está sujeito não tem qualquer direito ou protecção, vivendo à mercê do arbítrio de quem o vigia, lhe rouba o que não teria de pagar, não paga o que lhe deve, e até dá incentivos aos seus funcionários abusarem do seu poder. Os governos, o fisco e os seus apologistas bem podem falar de “eficácia”, mas a “eficácia” da AT é, na realidade, muito pouco eficaz.

O uso e abuso indiferenciado dos seus poderes, cobrando o que quiser a quem quiser, sem distinção entre quem realmente deve pagar e quem não deve, não é “eficácia”, é impunidade. Mas como o Estado e os que o ocupam dependem desse sistema, vai continuar tudo na mesma.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.