Não passou muito tempo desde o dia 23 de junho de 2016 e a ideia de num novo referendo sobre a permanência do Reino Unido (RU) na União Europeia começa a ser discutida. À primeira vista parece ser antidemocrático perguntar aos britânicos se têm a certeza do sentido em que votaram, com uma suposta secreta esperança de que mudem de ideias. Mas, na realidade, não é bem assim.

A Primeira-ministra do RU que, como é sabido, apoiou a “permanência” no referendo de junho, manifestou-se contra esta possibilidade, prometendo respeitar a vontade popular e acionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa sem delongas. Todavia, o acórdão do High Court of Justice da passada semana, se vier a ser confirmado pelo Supreme Court em dezembro, frustra os planos de Theresa May, uma vez que obriga o Parlamento a votar sobre os termos em que o procedimento de saída poderá ocorrer. O argumento de fundo é processual, não político, mas faz sentido. Foi o Parlamento que legislou sobre a adesão, sendo por isso também sua competência legislar sobre a saída.

Além do previsível atraso no processo de saída, a consequência mais visível desta posição é a de que o Governo perderá algum controlo sobre o processo, que passa para a Câmara dos Comuns e para a Câmara dos Lordes. Se é improvável – e ilegítimo – que os deputados se recusem a dar os passos necessários para efetivar a vontade popular mesmo que não se revejam nela, já não é nada improvável – nem ilegítimo – que o façam apenas mediante condições. E aqui a questão ameaça deixar de ser apenas processual e tornar-se também política.

O líder dos liberais democratas, que conta com oito deputados no Parlamento, colocou a questão em termos simples: votará contra acionar do artigo 50 do Tratado de Lisboa se o Governo não se comprometer com um segundo referendo sobre os termos da saída. No essencial, alega que em junho decidiu-se sair, mas ninguém sabe ao certo para onde. O destino só será claro após a conclusão do acordo com o Conselho Europeu. Por isso, o que exige é que, depois de acionado o artigo 50 e de concluída a negociação, haja novo voto popular sobre os termos do acordo de saída.

Esta posição é inteiramente legítima e até mais democrática do que a que o Governo do RU vem sustentando. Isto porque não é claro que quem votou sair, tenha votado sair em toda a linha da UE, ou antes sair da UE mas ficar no mercado interno. E, neste caso, em que condições, designadamente no que toca a restrições à liberdade de circulação de estrangeiros no Reino Unido que, como é sabido, foi um dos grandes impulsionadores do voto pela saída. Não é claro se aquilo em que muitos votaram pode ser alcançado no âmbito de uma negociação com a UE.

Como tive oportunidade de escrever antes, alcançar um acordo que sirva os propósitos do país, represente o voto popular e seja aceitável para a União Europeia – que obviamente não quer incentivar mais abandonos permitindo bons acordos de saída – parece virtualmente impossível. Todos os dirigentes europeus foram aliás perentórios ao afirmar que o Reino Unido não poderá escolher liberdades dos Tratados a la carte.

Não é neste momento possível saber o que vai acontecer e quais as posições que prevalecerão nesta batalha jurídica e política que se trava no Reino Unido. Mas parece claro que um segundo referendo seria inteiramente legítimo, justificado e até adequado. Em junho de 2016, sem acordo celebrado, não era possível saber em que se estava a votar. Depois de conhecido o acordo, é. Faz sentido ouvir novamente as pessoas nessa altura. Sem receios e sem fantasmas.