Ontem a terra tremeu. Era madrugada e muitos acordámos neste nosso país, do litoral sul ao centro, em sobressalto. Eu acordei. Levantei-me. Fui ver os miúdos. Dormiam bem. Levei tempo nisto tudo. E já não dormi mais. Fui escrever até começarem a chegar notícias, mensagens e chamadas. Chegaram muitas, uma onda que se formava lenta com o amanhecer. Devolvi respostas como quem dava vazão. E como quem ainda vinha a tempo de participar da formação da onda, escrevi mensagens a quem me importava mais, fiz alguns telefonemas. Uma latência instalou-se o resto do dia, como se a terra tremer pedisse algo de mim.

Notei que perguntámos umas às outras, pessoas amigas ou familiares, se sentimos a terra tremer, se a sentimos a ponto de acordar, se nos assustámos, se voltámos a dormir. Perguntávamos por um sentir a terra tremer e reparei que nesta pergunta há uma expectativa de comunidade em torno de um sentir comum. Sentimos juntos, e dianta da terra que tremeu, fez-nos falta senti-lo juntos.

A pergunta matinal “Sentiste?” constituiu esse estar juntos que somos a partir do juntos que fomos naquele instante em que tudo tremeu, e a partir da memória que nos ficou e que se reaviva na partilha, como uma persistência lúcida. A pergunta chama-nos a participar desse juntos. Mas não só. A pergunta é uma forma de cuidado pelos outros. Não deixar ninguém sem uma palavra, estarmos juntos, a fazer chão pavimentado com as lajes do sentir de cada um.

É extraordinário este sentir a terra tremer que pede testemunho, firmeza de chão, ao sentir das outras pessoas. Não somente porque pudéssemos hesitar, na sonolência da madrugada, sobre a interpretação a dar ao que acontecia, mas porque quando a terra treme assim a terra treme-nos e o seu estremecimento tem de ser amparado, sustido, acolhido na cortesia de um chão sensível, de peito aberto, um chão a fazer juntos e para que somos convocados pela pergunta “também sentiste?”

Se tivesse sido um grande terramoto, não faria sentido esta pergunta sobre o que sentimos, talvez fizesse mais sentido outra pergunta, sobre como foi possível sobrevivermos. É certo. Mas neste sentir entre o nada e o tudo, como em quase tudo, vê-se o que de outro modo se esfuma: sustermos o olhar uns dos outros,  escutarmos o que sentimos em comum, darmo-nos o tempo de deixar esse comum chegar e ressoar-nos no pensamento e, então, mudar atitudes, fazer-nos agir de maneira diferente.

Luminoso, Immanuel Kant escrevia nas suas célebres reflexões sobre o grande terramoto de Lisboa: «Nós não passamos de uma parte da Natureza, mas queremos ser considerados como se fôssemos ela inteira. Não queremos aceitar as regras gerais a que obedece a Natureza e desejamos que tudo esteja determinado só para nós.»[1] Passou-se um quarto de milénio, mas não poderiam ser mais actuais estes pensamentos. Até no sentido mais mundano, sobre como encaramos o mundo construído em que vamos habitando, Kant dá-nos do melhor pensamento – «Não seria melhor dizer-se, antes: é razoável que haja terremotos, mas não é razoável construir edifícios sumptuosos!? Os habitantes do Peru vivem em casas de paredes de pedra pouco altas e com a parte superior feita de colmo. O homem deve adaptar-se à Natureza, e não querer que ela se lhe adapte.» (Idem)

Agora que partilhamos à exaustão dicas e manuais de sobrevivência para o caso de a terra tremer demasiado, importaria também guardarmos o que sentimos quando a terra nos treme: a terra nosso chão, e nós chão dela, tremendamente.

 

[1] Ensaios de Kant a propósito do terremoto de 1755, traduzidos por Luís Silveira. Lisboa: Publicações culturais da Câmara Municipal de Lisboa, 1955.