Fiquei muito dececionado quando li que Alex Younger, o patrão dos espiões ingleses ou, para ser mais concreto, do MI6, disse que James Bond nunca seria contratado para espiar por conta de Sua Majestade. Foi o desmoronar de um sonho de juventude. Não tenho vergonha em confessar que, nesses tempos em que imaginamos o que queremos ser no futuro, me vi muitas vezes no papel de superespião 007. Sem problemas de dinheiro, grandes carros, a levar os casinos à bancarrota, bater nos maus e ficar com a rapariga, sempre a mais bonita, e a ganhar no fim apesar das situações quase perdidas que vão inevitavelmente ocorrendo ao longo do filme. Que mais se pode querer?

Portanto, achei incrível que o senhor Younger tivesse a lata de criticar quem fez mais pelo recrutamento de espiões que toda a gente que ele tem no MI6 e fora dele. Que é que ele pensa que faz uma pessoa querer ser espião? Querer saber coisas? Se a curiosidade matou o gato, o que não faz a um espião? E acha ele que é a dizer que um espião não tem cheta para despesas, que o seu salário é miserável, que passa a vida a levar pancada, que as mulheres lhe cospem em cima, que vai ter uma fila de candidatos à porta quando quer recrutar alguém? Só os masoquistas é que se iriam candidatar, e ter um masoquista como espião não me parece uma boa escolha – iriam logo autodenunciar-se ao inimigo para passarem uma tarde agradável numa câmara de tortura.

O que move então o senhor Younger? Zangou-se com Daniel Craig e quer que ele seja despedido? Não, Craig já decidiu que não iria ser o próximo Bond. O que move Younger é outra coisa: tornou-se político!

Ser político é uma doença de que ele mostra agora o primeiro sintoma, que não é mais que a inveja. Tem inveja, é tudo. Sabe perfeitamente que, como funcionário público que é, não pode gastar dinheiro como James Bond. Não vê as balas passarem-lhe à volta, iria com certeza apanhar com uma no corpo; não consegue guiar um Aston Martin a 150 à hora nas ruas estreitas de uma vila italiana sem se estampar contra um poste; e nunca seria convidado a fazer um anúncio da Axe, com as mulheres a desmaiarem à sua volta. Já está, aliás, a passar à segunda fase da doença, que é proibir os outros de fazer aquilo que lhe faz inveja. Já diz que só pode ser espião quem tem uma elevada ética e uma conduta moral irrepreensível, sobretudo com as mulheres.

Alguém acredita? Os segredos, mesmo os de Estado, não são de alcova? Não, o homem já foi mordido pelo bicho, e não tem cura. Daniel Craig sai da sua vida real para fazer de conta quando filma, o animal político Younger esconde quem é e faz de conta na vida real. Isto explica porque Younger descreve a profissão como os políticos descrevem o país, de uma maneira que nenhum habitante o reconhece.

Infelizmente, se a moda de Younger pega, vou deixar de ver os filmes do 007. Nem é por causa de se quebrar um sonho de juventude, é porque não sou capaz de ver James Bond a andar num Fiat Uno, a comer em cantinas e beber em tabernas, a tentar subornar alguém com uma moeda de dois euros, a desembarcar de uma traineira e a vestir-se nas caixas onde deixamos a roupa usada aos pobres. Se acham que estou a exagerar, vejam o que os políticos têm feito aos países.

 

Nota biográfica: Hemp Lastru (n. 1954, em Praga) é sobrinho neto de Franz Kafka. Democrata convicto, ativista e lutador político, é preso várias vezes pela polícia secreta checoslovaca, tendo sido sentenciado em 1985 ao corte de uma orelha sob a acusação de “escutar às portas”. Abandona a política em 1999, deixando Praga para residir em Espanha. Mudou-se para Portugal em 2005 porque “gostaria de viver num país onde os processos são como descrevia o meu tio-avô nos livros.”